Recusa de transferência para outro hospital ou operação já agendada entre as razões apontadas para a não utilização.
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Mais de 76 mil vales de cirurgia ou notas de transferência foram emitidos no primeiro semestre deste ano, ao abrigo do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC). No entanto, segundo os dados provisórios cedidos ao JN pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), apenas 20,2% foram utilizados. A maioria dos utentes não cativou o vale para ser operado noutras unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS), do setor privado ou do setor social, sendo que, em caso de recusa, os doentes voltam para a lista de espera do hospital de origem. Este é um padrão que se tem verificado ao longo dos anos. De 2017 até 2021, a taxa de cativação dos vales ou das notas de transferência oscilou entre 17,7% e os 23,8% (ver infografia).
Entre os motivos para a não cativação dos vales ou das notas de transferência, refere a ACSS, estão a "recusa de transferência para outro hospital pelo doente"; a data para utilização ter expirado "sem ação do doente"; e a "cirurgia já estar agendada no hospital de origem". Óscar Gaspar, presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada, garante ainda que há vales que encaminham o doente para hospitais distantes da zona de residência.
A "baixa cativação" preocupa Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, que considera importante olhar para as causas. "Grande parte dos casos é de doentes que optam por ficar com as equipas que já os acompanham no hospital de origem. Existe, também, uma questão de confiança na equipa. Depois, existem questões que acabam por dificultar a escolha do doente. Se, por exemplo, o vale for emitido para um conjunto de hospitais e todos eles forem distantes do local de residência, naturalmente, o doente prefere não cativar o vale, esperar mais algumas semanas e ser operado no hospital de origem", referiu o responsável.
Repensar o programa
Para Xavier Barreto, os dados não permitem fazer uma ligação direta entre a recusa dos vales de cirurgia ou das notas de transferência e um aumento dos tempos de espera. Até porque há hospitais a realizar, nomeadamente aos sábados, "muita cirurgia adicional", de forma a dar resposta aos utentes. Ainda assim, considera, "faz algum sentido repensar o programa SIGIC", para perceber se "está a produzir os efeitos esperados". Essa revisão, defende ainda, poderá passar por dar mais autonomia aos hospitais para contratualizar cirurgias ou alugar blocos operatórios com o setor convencionado, em caso de necessidade, garantido sempre que o doente é operado dentro do tempo máximo de resposta.
"Em alguns casos, há quase uma perda de controlo do hospital de origem sobre o processo e o acompanhamento do doente. Há uma interrupção. Faria mais sentido que ficasse no âmbito dos hospitais contratualizar o aluguer de blocos ou até a realização da cirurgia, mas que o hospital mantivesse o controlo sobre o processo do doente", referiu Xavier Barreto, dando como exemplo o Hospital de Braga que, "no ano passado e há dois anos, contratualizou com entidades do setor social e do setor privado da região o aluguer de blocos cirúrgicos e realizou milhares de cirurgias nesse modelo".
"Eram os clínicos do Hospital de Braga que iam a esses hospitais realizar as cirurgias. Mantemos o doente dentro do percurso clínico", exemplificou. v
SIGIC foi criado em 2004
O Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC) foi criado em 2004. Segundo a resolução do Conselho de Ministros, de junho desse ano, o sistema tem como objetivo "minimizar o período que decorre entre o momento em que um doente é encaminhado para uma cirurgia e a realização da mesma".
Vale de cirurgia/nota de transferência
Quando o hospital não consegue realizar a operação num "tempo clinicamente aceitável", é emitido um vale de cirurgia ou uma nota de transferência, encaminhando o doente para outra unidade pública, privada ou social. Cabe ao utente aceitar a transferência ou recusá-la. Em caso de recusa, o doente regressa para a lista de espera do hospital de origem.
Emissão de terceiro vale de cirurgia
O SIGIC emite "automaticamente dois vales de cirurgia, tendo em conta a prioridade clínica e a tipologia em causa". O sistema permite a emissão de um terceiro vale, a pedido do doente, "depois de atingidos os 100% do tempo decorrido para a prioridade clínica atribuída pelo médico".
Recurso ao privado "é cada vez mais marginal"
O número de vales emitidos caiu e há uma baixa taxa de cativação. A que se devem estes números?
De 2018 a 2021, o número de cirurgias feitas no setor convencionado caiu 30%. As cirurgias feitas no regime convencionado [privado] não ultrapassam os 3,5% do total de cirurgias do SNS. É cada vez mais marginal. Há uma maior internalização, portanto, tem-se recorrido ao chamado serviço interno nos hospitais do SNS. Por outro lado, sentimos que há questões que têm a ver, essencialmente, com as regiões do Alto Minho e Trás-os-Montes, em que os vales apontam para hospitais bastante distantes do local de residência do cidadão. Tem sido a principal razão pela qual muitos vales acabam por não fazer o que deviam: permitir a cirurgia a tempo e horas.
O SIGIC deve ser repensado?
O importante é que as pessoas tenham a sua cirurgia dentro daquilo que são os tempos máximos de resposta garantidos. A APHP remeteu à ACSS várias propostas de alteração do procedimento administrativo de emissão e de processamento dos vales cirúrgicos. Pedimos, por exemplo, uma atenção com o algoritmo de emissão para garantir que fossem remetidos para os hospitais mais próximos da área de residência.
Óscar Gaspar
Pres. Associação Portuguesa de Hospitalização Privada