Velocípedes parados, a ganhar pó, foram arranjados pela cicloficina Crescente para mudarem a vida de quem está mais desprotegido. O projeto da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa já emprestou veículos a dez rapazes. Desde que pedalam sentem-se mais livres, independentes e felizes.
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Alireza Mokhtarpour saiu do Irão com apenas 9 anos, viveu na Turquia e depois na Grécia. Há um ano e meio arriscou a viagem pelo mar Mediterrâneo num barco de plástico até Portugal. Os olhos humedecem-se ao relembrar, mas assim que monta a bicicleta começam a brilhar. "Sinto-me mais livre e feliz a pedalar. Nunca defino um sítio certo para ir, vou onde me leva o coração. É melhor do que ficar em casa, pensa-se demasiado", confessa o jovem de 19 anos. Já trabalha, fala bem português, e conquistou a autonomia que lhe faltava com o velocípede.
"Consigo ir a qualquer sítio de que gosto rapidamente. Se apanho o autocarro de Sacavém para Lisboa demoro quase meia hora e não posso pedir ao motorista que pare para eu tirar uma fotografia. Sozinho conheço melhor a cidade e desvio-me do trânsito", diz, entusiasmado.
A primeira bicicleta de Alireza foi emprestada pela cicloficina Crescente, um projeto do Centro de Promoção Social da PRODAC e outras entidades locais, que nasceu em Marvila, em 2018, com o intuito de reparar e ensinar a consertar bicicletas.
Tínhamos bicicletas estragadas paradas a um canto. Começamos a repará-las e a emprestá-las e foi aí que percebemos que o acesso à bicicleta podia ser muito transformador
O "Bicicleta com Asas" surgiu depois para transformar a vida de jovens ainda em processo de autonomia apoiados pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). "Tínhamos bicicletas estragadas paradas a um canto. Começamos a repará-las e a emprestá-las e foi aí que percebemos que o acesso à bicicleta podia ser muito transformador para algumas pessoas", explica Júlio Santos, técnico da instituição.
A Equipa de Integração Comunitária da SCML começou então a sinalizar jovens que poderiam beneficiar dos veículos de duas rodas e a cicloficina a emprestá-los. Desde setembro de 2020, dez rapazes, entre os 18 e os 24 anos, já viram a sua vida mudar através deste projeto. Cherif Sow, 20 anos, agora chega sempre a horas ao trabalho. "Entro muito cedo no supermercado, às 6 da manhã, e de autocarro era mais complicado. Gosto de regressar a casa cedo também e de bicicleta consigo", conta o jovem natural da Guiné-Conacri.
Desde que lhe deram uma bicicleta, em janeiro de 2021, Alireza não parou. "Gosto de ir até ao Guincho sozinho porque ando muito mais rápido e gosto de ir até longe, onde normalmente ninguém gosta de ir". Quando o valor do seu passe aumentou de 16 para 40 euros, passou a usar só este meio de transporte e a pensar em formas de comprar a própria bicicleta. Em abril atingiu o objetivo. "Comprei a minha e entreguei a emprestada a quem precisa mais. Já foi usada por mais dois", partilha.
A bicicleta é empoderadora ao permitir uma mobilidade autónoma e há ainda o fator da socialização, é uma forma de se juntarem
O empréstimo dura um ano, mas, se ao final deste período, a bicicleta ainda for importante nas suas vidas, ficam com ela. Há quem use o veículo para trabalhar, na entrega de refeições, para se descolar à escola ou emprego e a atividades desportivas, mas o projeto abrange mais dimensões da vida destes jovens. "Como gerem finanças curtas, qualquer poupança tem um impacto mais significativo. A bicicleta é empoderadora ao permitir uma mobilidade autónoma e há ainda o fator da socialização, é uma forma de se juntarem. Dizem-nos também que melhorou o seu bem-estar psicológico", exemplifica o técnico.
Os jovens envolvidos no projeto são todos imigrantes, embora não seja um critério de seleção. "Definimos terem vontade e necessidade de usar a bicicleta. Eles têm essas características e uma grande capacidade de luta e resiliência. Querem muito reconstruir a sua vida", conclui