Filipe tinha 11 anos quando começou a temer o toque para o intervalo. Um dia, colaram-lhe um papel nas costas. Dizia: “batam-me.” E bateram. Empurrões, insultos, risos abafados - e uma certeza: era sempre ele o alvo.
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Nesta reportagem ouvimos vítimas, uma mãe, um antigo diretor escolar e uma psicóloga clínica, para compreender como o bullying na escola continua a acontecer todos os dias, muitas vezes diante de olhares que preferem não ver.
O bullying não acaba com o toque de saída. Leva-se para casa, para dentro, e às vezes para a vida inteira. Filipe tem hoje 21 anos. Quando recorda os anos de escola, não fala em manuais ou visitas de estudo. Fala em nomes. Em empurrões. Em papéis colados nas costas com a frase “batam-me”.
“O bullying começou de forma subtil, mas cresceu depressa”, lembra. “Primeiro eram comentários, depois vieram os risos abafados, o isolamento. Um dia, puxaram-me o cabelo até ao chão. Outro dia, fui agredido por um rapaz com muletas.”
Durante anos, Filipe foi visto como o “menino magro”, “diferente”, “fraco”. “Era gozado por tudo o que eu era. Até por me sentir melhor a brincar com raparigas. Parecia que tudo em mim estava errado.”
Em casa, encontrou apoio. “Tive sorte, porque nunca precisei de esconder nada em casa. Mas nem sempre isso chega.” Os pais foram à escola, falaram com professores, pediram ajuda. Mas o ambiente continuava hostil.
“A escola deixou de ser um espaço seguro. Eu só queria estar no meu quarto.” Apesar das boas notas, Filipe foi-se apagando. “Comecei a acreditar no que diziam. Falar em público era um pesadelo. Fiquei emocionalmente mais frágil.”
Foi através da música e da exposição consciente que começou a recuperar. “Quero comunicar, estar em palco. Mas tive de me obrigar a dar esse passo. Porque ninguém nos ensina a colar os pedaços outra vez.”
Hoje, sente-se mais forte, mas alerta. “Quando estou exposto, há uma parte de mim que recua. É automático. Parece que vou ser gozado outra vez. Mas agora sei: faz parte da minha história. Já não me destrói.”
Ignorada pela turma
Carolina, com 19 anos, cresceu num silêncio semelhante. A exclusão começou no 2.º ciclo. Era tímida, diferente, gostava de desenhar. E isso bastou. “No início, achei que era só uma fase. Depois percebi que era escolha.”
Nunca foi insultada. Apenas ignorada. “Um dia pediram-me para tirar a fotografia da turma com o telemóvel, só para não aparecer. Disseram que era por causa da estética. Sorri. Mas por dentro, chorei.”
Passou a isolar-se por iniciativa própria. Biblioteca nos intervalos. Cantina sem pressa. Qualquer desculpa para não estar visivelmente sozinha. “Tudo era melhor do que mais um momento a tentar pertencer.”
Nem sempre os adultos ajudavam. “Uma professora disse-me: ‘Tens de te integrar mais.’ Como se o problema fosse meu.”
O alívio só veio com a mudança de escola. “Na nova turma, ninguém me conhecia. E isso foi libertador.” Hoje está mais segura, mas as marcas persistem. “Ainda há uma parte de mim que se prepara para ser deixada de fora.”
O que Carolina viveu não foi menos doloroso só por ser silencioso. Foi bullying. E continua a ser uma violência real, mesmo quando é escondida atrás de um sorriso.
Quando os pais descobrem tarde demais
“Eu só quero que ela estude em paz. Que não tenha medo. Que não seja apontada como se fosse um erro.”
Susana Ferreira é mãe da Mariana (nome fictício), aluna do 9.º ano. A filha tem uma expressão diferente – a boca ligeiramente torta, os dentes desalinhados. Nada de grave, nada que afete a saúde. Mas foi o suficiente para ser olhada como “anormal”. Numa sala cheia de adolescentes cruéis, bastou isso para se tornar o alvo.
O bullying começou no 7.º ano. Comentários murmurados, gozos disfarçados de brincadeira, olhares cúmplices sempre que ela abria a boca. “Ela tem dificuldades na fala, e isso tornou tudo pior”, conta a mãe. “É como se a escola estivesse cheia de especialistas em humilhar quem é diferente.”
Susana foi notando as mudanças em casa: os silêncios, o medo de ir à escola, os pedidos para faltar. Mas foi preciso Mariana juntar coragem para confessar o que a vinha a sufocar. “Mãe, foi alguém da minha turma que me chamou aquilo.” Só isto. Mas foi tudo.
No dia seguinte, Susana não hesitou. Pediu para entrar numa aula e falou de frente para a turma inteira. “Não gritei. Mas também não pedi licença. Falei por ela. Pela minha filha. Pela dor que ela não conseguia pôr em palavras.”
A partir daí, o bullying abrandou – não porque a escola agiu, mas porque a mãe fez o que ninguém tinha feito até então: protegeu.
“Ainda acontece. Em pequenas coisas. Num olhar, numa piada disfarçada. E ela sente tudo. Leva tudo para casa.”
Hoje, Mariana está prestes a terminar o 9.º ano. “E mal posso esperar que saia desta escola”, desabafa Susana. “Só quero um lugar seguro. Onde ninguém a veja como um erro a corrigir. Porque a minha filha não tem defeito nenhum. O defeito está em quem não a soube ver como ela é.”
Escutar é o primeiro passo
“Quando um aluno começa a faltar com frequência, a fechar-se em silêncio ou a evitar certos espaços, é porque algo se passa. E muitas vezes, é bullying.” Quem o diz é um ex-diretor de agrupamento escolar com décadas de experiência no ensino. Diz que viu muitos casos acontecer, e nem sempre conseguiu agir como gostaria. “Não é por falta de empatia. É por falta de tempo, de meios, de braços. Um professor tem trinta alunos à frente. E muitos sinais são subtis. Muito subtis.”
Para este responsável, o maior entrave é o silêncio que se normalizou. “Há uma cultura de esconder. De não fazer ondas. Os próprios alunos têm medo. Os pais só descobrem quando os sinais já gritam. E os professores, mesmo quando percebem, muitas vezes ficam de mãos atadas.” Já ouviu de tudo. “‘O meu filho não é assim.’ ‘Ele está a brincar.’ ‘A sua escola é que não presta.’” E sublinha: “Isto trava qualquer tentativa de diálogo.”
A solução começa na escuta. “O primeiro passo é escutar. Verdadeiramente. Ouvir sem julgar, sem minimizar. Quando um aluno diz que está a ser gozado ou humilhado, temos de levar a sério. Porque se não ouvimos a tempo… já vamos tarde.”
Quando a dor entra no consultório
“O bullying escolar não é uma fase. É um comportamento intencional, agressivo, repetido e com desequilíbrio de poder.” A afirmação é de Ana Carina Sousa Peixoto, psicóloga clínica no Instituto CUF, que já acompanhou inúmeros jovens marcados por experiências de exclusão, humilhação e medo.
“A vítima pode apresentar ansiedade, isolamento, alterações no sono, comportamentos autodestrutivos. Em casos mais graves, surgem quadros de depressão ou perturbações obsessivo-compulsivas.” A autoestima é uma das primeiras a sofrer. “Muitos jovens passam a sentir vergonha, insegurança, uma sensação de rejeição constante. Interiorizam a ideia de que não valem nada.”
Os agressores também carregam feridas. “Muitos já foram vítimas antes, vêm de contextos disfuncionais e apresentam dificuldades emocionais. A longo prazo, podem desenvolver comportamentos de risco, atitudes antissociais ou dependências.”
Para Ana Peixoto, o caminho passa pela prevenção e pela intervenção estruturada. “O apoio psicológico nas escolas tem de ser contínuo. É preciso validar emoções, desenvolver competências sociais e reestruturar valores – não só em vítimas, mas também em agressores.”
Quase um quinto testemunhou ou foi vítima
Em Portugal, 5,9% dos jovens afirmam já ter sido vítimas de bullying. Outros 12,4% dizem ter testemunhado situações de agressão. Os dados constam do relatório “Bullying e Ciber-bullying em Contexto Escolar”, publicado em fevereiro de 2025.
A própria Direção-Geral da Educação admite: os números reais devem ser mais altos. Muitos casos não são denunciados. Outros são desvalorizados. E há formas de violência – como o isolamento social ou o ciberbullying – que continuam a escapar aos registos oficiais.
A Ordem dos Psicólogos Portugueses reforça o alerta. O bullying pode comprometer gravemente o desenvolvimento social, emocional e académico das vítimas. Já a Amnistia Internacional vai mais longe e associa o fenómeno à violação de direitos humanos, muitas vezes baseado na aparência, género, etnia ou orientação sexual.
Como resposta, o Governo lançou a campanha nacional “Age. Fala. Muda”, criou linhas de apoio e definiu equipas multidisciplinares para intervir em casos detetados. Ainda assim, os testemunhos recolhidos mostram que há muito por fazer – e que, dentro das escolas, a realidade continua a pedir mais ação e menos promessas.
“Tu não és o problema”
Durante anos, Filipe acreditou que era o problema. Carolina convenceu-se de que não merecia ser ouvida. Mariana chorava no colo da mãe, sem saber explicar porquê. E quantas outras histórias continuam caladas por vergonha, medo ou descrença?
Muitos jovens não denunciam porque acham que não vão ser levados a sério. Porque têm medo de represálias. Ou porque acreditam que ninguém os vai ajudar. Todavia, denunciar não é fazer queixa, é um ato de coragem. Filipe deixou uma frase que fica no ar como um sussurro cheio de força. “Tu não és o problema. E a tua vida pode – e vai – ser melhor do que aquilo que estás a viver agora.”
O que é o bullying?
O bullying escolar não é uma simples discussão entre colegas. É um comportamento repetido, intencional e com desequilíbrio de poder. Pode ser físico, verbal, emocional ou digital – e o seu objetivo é sempre o mesmo: magoar, humilhar e excluir. A agressão pode ser visível, como insultos ou empurrões, mas também silenciosa: o isolamento, o desprezo, o constante fingir que o outro não existe. Muitas vezes, estas formas passam despercebidas a olhos adultos – mas são profundamente destrutivas
Onde pedir apoio
As linhas de apoio SOS Voz Amiga (213 544 545 / 912 802 669 / 963 524 660) e SNS 24 (808 24 24 24) e este site têm recursos úteis para quem precisa de ajuda. Também há psicólogos escolares, professores atentos, diretores que escutam e famílias que querem ajudar.
*Estudante de Jornalismo na licenciatura em Ciências da Comunicação da Universidade Lusófona do Porto, Rémy Marques, 19 anos, sonha ser apresentador de televisão. Comunicar é o que o move - com verdade, presença e vontade de fazer a diferença.