Uma "resposta agressiva" em vez de "gradual", guiada por "três linhas vermelhas", e uma testagem massiva enquanto "arma principal" é o que propõe o especialista Manuel Carmo Gomes, que integra a Comissão Técnica de Vacinação contra a covid-19 e que deixará de participar nas sessões que juntam especialistas, políticos e parceiros sociais.
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Um dos nomes mais conhecidos por guiar o Governo com pareceres técnicos na gestão da atual situação epidemiológica, Manuel Carmo Gomes, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, destacou-se, na terça-feira, pela análise particularmente crítica à "resposta gradualista" no combate à pandemia. Em síntese, numa intervenção no Infarmed cujo conteúdo já seria conhecido pela ministra da Saúde, disse que as medidas graduais não servem, que é preciso testar mais e que faltam critérios claros. Caso contrário, o Governo continuará a correr "sempre atrás da pandemia", alertou o especialista, que prefere uma resposta "muito forte" em duas semanas do que um confinamento brando durante mais tempo.
"Estratégia agressiva" e "três linhas vermelhas"
As medidas de resposta ao aumento de casos chegam com sete dias de atraso, porque têm por base indicadores lentos, como o Rt (índice de transmissão), apontou Carmo Gomes, explicando que só 15 dias depois se vê o resultado das medidas e que, normalmente, se revelam insuficientes. "Esta resposta gradual não pode acontecer com um vírus que cresce exponencialmente e divide a sociedade", disse terça-feira o perito, que defende "uma estratégia agressiva" guiada por "regras objetivas, conhecidas por todos", para que todos saibam quando confinar e desconfinar (a linha de atuação é defendida também por um grupo de mais de 800 cientistas europeus, reunidos no site https://www.containcovid-pan.eu/). Assim, o epidemiologista propõe que a estratégia se guie por três "linhas vermelhas", que, ao serem ultrapassadas, pedem ações decisivas e medidas fortes: o Rt superior a 1,1; a percentagem de testes positivos abaixo dos 10% e uma incidência maior do que 2 mil casos diários.
Em paralelo, é preciso aumentar o número de testes de diagnóstico, através dos quais se consegue controlar a pandemia: "A testagem é a arma principal, não o confinamento" e é "uma forma de segurar a mola de pressão e, de quando o desconfinamento se realizar, a mola não disparar". Os testes, respondeu Temido, são feitos com base em "critérios técnicos" definidos pela Direção-Geral da Saúde, e aumentá-los não é uma "alternativa" ao confinamento, mas sim "uma medida que ajuda a prevenir um descontrolo da infeção". Ainda assim, ressalvou, o Governo tem insistido, junto da DGS, na necessidade de "alargamento" da testagem, rastreando os contactos "independentemente do grau de risco"
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Quem é e o que tem defendido
É com base na informação transmitida pelos peritos nas habituais reuniões no Infarmed que o Governo tem decidido que medidas adotar para, como tem dito António Costa, manter ou aliviar "a pressão na mola". Um desses peritos foi, até agora, Manuel Carmo Gomes.
Uma das primeiras vezes em que se ouviu o seu nome foi a 31 de março de 2020, quando, pela primeira vez, Portugal superou os mil casos num dia. Em resposta ao Presidente da República, no Infarmed, foi cauteloso na hora de arriscar previsões, não se comprometendo com uma data para o pico da pandemia: "Pode ser já na primeira quinzena de abril, como pode estar a ocorrer neste momento, como pode até já ter ocorrido."
A 19 de abril, quando havia mais de 20 mil casos, destacou, na Rádio Renascença, a importância dos testes serológicos alargados para apurar "as regiões do país em que há mais pessoas imunizadas" e "a realidade por grupo etário". E pediu um desconfinamento "com passinhos de bebé, um de cada vez e sempre muito vigilantes", argumentando que "aquilo que fizermos hoje aparece só daqui a sete ou 15 dias". Já na altura, quando as fórmulas matemáticas começavam a permitir previsões, o perito antecipava a "inevitabilidade de uma segunda onda" e desaconselhava uma "estratégia ioiô", ou seja, alternando regularmente entre confinamento e desconfinamento. Importante, apontava, era "ter um bom sistema de vigilância" que permitisse "detetar com rapidez os novos casos, isolá-los e fazer o rastreio de contactos".
No fim de maio, quando Lisboa e Vale do Tejo passou a ter quase 90% dos novos casos no país, o perito defendeu ao "Público" a aplicação de medidas proporcionais "do ponto de vista geográfico", considerando, ainda assim, que o desconfinamento estava "a correr razoavelmente bem" e que os hospitais não estavam "sob grande pressão". E a 13 de junho, quando o número de infetados superou os 36 mil, salientou, no "Expresso", o risco de "locais fechados, pouco arejados, não expostos a radiações ultravioletas e com baixa humidade", como "dormitórios, cafés, transportes, cantinas": "É nesses locais que podem surgir os supertransmissores, quando uma só pessoa infeta 10, 15 ou 20."
Logo no início de agosto, num artigo de opinião no "Público", onde escreve, apontou a falta de vacina ou de tratamento como "a maior preocupação das autoridades de saúde em Portugal e em todo o hemisfério Norte", abrindo a porta a um "forte ressurgimento da epidemia" no outono e lendo como "muito mau sinal" um eventual regresso às medidas de confinamento geral. Manuel Carmo Gomes defendia então que Portugal deveria ter um mapa de risco atualizado diariamente, "que auxiliasse cada município a conhecer em tempo real a sua situação epidemiológica e a dos municípios vizinhos".
Antes do Natal - época para a qual defendia a manutenção das medidas, com pontuais "reajustes" - previu um aumento do número de contágios, considerando, "do ponto de vista epidemiológico", o alívio das restrições à circulação entre concelhos "totalmente desaconselhável". Já em janeiro, debateu-se pelo fecho das escolas e, ao JN, considerou que o regresso ao ensino presencial deveria ser "muito faseado e gradual, devendo começar pelos mais novos". Apontou ainda como crucial não se baixar a testagem e aumentar a vacinação, adiando a segunda toma: "Caso contrário, as restrições podem arrastar-se até abril ou arriscamos uma quarta vaga por causa do predomínio da variante do Reino Unido".
Agora, embora se mantenha disponível para continuar a apoiar com pareceres técnicos, o epidemiologista vai deixar de participar nas reuniões no Infarmed, devido a motivos "da vida profissional", fez saber Marta Temido no final da reunião com os peritos. Advogando que nenhum elemento da consulta técnica ao Governo deve ser afastado por dissonância de opiniões, assegurou que não foram as declarações sobre a atuação do Governo que colocaram o docente de fora dos encontros, tendo o próprio optado "por pedir para continuar a apoiar o grupo, mas não fazer apresentações técnicas".
Apesar do elogio social-democrata - o deputado Ricardo Batista Leite agradeceu, no Twitter, o contributo "decisivo" do seu trabalho e o "serviço público" prestado - Carmo Gomes pediu, em declarações ao "Público", que não se faça nenhuma "exploração política" do assunto, e, à "Visão", esclareceu que não sai desavindo: "Não estou zangado com ninguém. Hoje [ontem] achei apenas que era a minha oportunidade de fazer as pessoas refletir".
Perfil
Carmo Gomes tem uma Licenciatura em Biologia e um Mestrado em Probabilidades e Estatística, ambos pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, onde é professor desde 1985, lecionando atualmente Dinâmica Populacional, Modelos Biomatemáticos e Epidemiologia de Doenças Transmissíveis. É ainda doutorado em Biologia pela Universidade Memorial de Newfoundland, no Canadá.
Como investigador, explica num perfil publicado online, o seu trabalho tem-se centrado, desde 1995, na epidemiologia de doenças transmissíveis, com "especial atenção" a doenças como o sarampo, papeira, rubéola, tuberculose e meningite. Paralelamente, integra a Comissão Técnica de Vacinação (CTV), uma comissão técnico-científica independente que acompanha continuamente a vacinação em Portugal e no mundo, emitindo pareceres relativos à introdução de novas vacinas ou alterações no Programa Nacional de Vacinação. É nesse contexto que dá pareceres técnicos sobre a estratégia de vacinação contra a covid-19.