Carvalho da Silva aponta para responsabilidades do poder político na fragilização dos sindicatos.
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Numa sociedade cada vez mais atomizada e fragmentada, em que as questões sociais voltam a ganhar centralidade, a Esquerda tem tido dificuldade em dar respostas. Com uma experiência de 25 anos a liderar a CGTP, a que soma a investigação académica, Carvalho da Silva alerta para os riscos dos movimentos inorgânicos e para a responsabilidade do poder político na fragilização dos sindicatos.
Escreveu há dias que a concertação social está governamentalizada. Mais do que quando era líder da CGTP?
A governamentalização teve períodos, é preciso dizer...…
Em governos específicos?
Uns mais que outros. Mas é preciso clarificar o conceito de governamentalização, porque na minha conceção o Governo deve ser um ativo municiador da concertação social. É importantíssimo levar para dentro do debate da concertação social tudo o que tem a ver com trabalho, qualificações, profissões, etc., mas também temas que são muito fortes na sociedade atual, como é o caso da habitação e outros. O problema é quando a introdução de matérias na concertação se limita a agenda de curto prazo e meramente taticismo para arranjar ali apoios. Isso é que mina a concertação social. A concertação tem outros problemas, há um enviesamento de partida que coloca os sindicatos numa situação muito frágil - a velha concessão antidemocrática de que basta uma confederação sindical assinar.
Devia haver a mudança e correção desses enviesamentos?
O melhor período da concertação social, na minha opinião, foi numa parte da governação de António Guterres, quando houve uma estratégia, a que chamaram de geometria variável, que levou a haver muito mais reuniões entre as confederações sindicais, entre as sindicais e as patronais, etc. Hoje, os sindicatos estão muito fragilizados e esta situação da concertação não resolve. Por outro lado, não há concertação social se não houver contratação coletiva, não há concertação social se no dia a dia das empresas e dos serviços não existir um sistema de relações de trabalho estruturado e a funcionar.
Foram os parceiros sociais que provocaram a fragilidade, que deixaram os governos ter maior poder na negociação?
É difícil dizer. Há lacunas por presença e por ausência, sem dúvida, mas se os mecanismos fossem efetivamente democráticos, se os compromissos assumidos na concertação funcionassem nos mesmos moldes em que funciona, por exemplo, todo o processo para a criação de uma lei na Assembleia da República e para o seu acompanhamento, era a dinâmica da necessidade de participação que se revelava.
O Governo deveria ceder perante as reivindicações salariais que estão a ser apresentadas por classes profissionais?
Eu partilho, também a partir de investigação que temos feito, da opinião de vários atores desta área que têm dito que os salários em Portugal, com a produção da riqueza que temos, estão 20% abaixo do que deviam ser.
Não há nenhuma diferença nessa proporção entre o setor público e o privado?
Ligeirissimamente mais grave em alguns subsetores da Administração Pública, mas, repito, ligeirissimamente. Quanto mais se cria a ilusão de que a política fiscal pode substituir a melhoria dos salários com umas migalhazitas na redução de impostos, mais se agrava o desfasamento do valor real dos salários daquilo que devia ser. Há uma outra observação: a melhoria dos salários e das condições de vida dos trabalhadores e as dinâmicas que isso gera nas empresas são um dos fatores fundamentais para a modernização das empresas.
No caso concreto da Administração Pública, a limitação orçamental não é um problema?
Há um viés económico na condução das políticas, uma subordinação a um fundamentalismo da financeirização da economia. E isso mata possibilidades de resposta porque limita. Há um outro problema. Os sindicatos são estruturas de intermediação na sociedade. A não resposta aos problemas que os sindicatos apresentam tem um efeito negativo muito grande, conduz a uma disfuncionalidade da sociedade muito perigosa. Bento de Jesus Caraça, para mim o maior pensador português do século XX, em 1933, quando cheirava a aproximação da guerra, e perante a dinâmica de agitação nas forças públicas, escrevia que o tempo que se estava a viver era tempo de passagem, em que coexistiam todas as contradições. E é isso que nós vemos.
Em que se traduz?
Por exemplo, as propostas feitas pelo Governo sobre o subsídio de desemprego. Em Portugal, o valor médio de subsídio de desemprego é de 649 euros. Mas os beneficiários são colocados debaixo de suspeição. Na sociedade, em todas as áreas, os comportamentos desviantes são sempre entre 3 e 4%. Não são mais que isso. Esta maldade de utilizar comportamentos desviantes para atingir os direitos de todos é um desvario. Outro exemplo, habitação. Acho que a sociedade portuguesa tem dois desafios muito grandes que precisava de tomar a sério. Um é a pobreza, somos excessivamente condescendentes com a pobreza. O segundo é a situação da habitação, que não é um problema individual, é coletivo. Está a ser negado aos jovens deste país um direito fundamental, que é o acesso à habitação digna. Não podemos assistir a isto e continuar à espera que o mercado resolva. O Caraça disse que a coexistência de todas as contradições faz desse tempo de passagem uma feira de desvarios. É a isto que assistimos. E expressa-se na política.
A política é arrastada para esses desvarios?
Ou arrasta para. A política é intérprete, tem de ser sempre a primeira responsável. Por outro lado, vivemos um tempo em que faltam trabalhadores. Na escola, quando se fala de trabalho, há dois conceitos: colaborador e empreendedor. E o que é que nós precisamos, é de colaboradores? Não, é de serralheiros, eletricistas, estucadores, carpinteiros... A juventude está desviada da perceção de qual é o lugar do trabalho na vida. Da manufatura. Do equilíbrio entre individual e coletivo. Tudo está apontado para o mérito e a avaliação individual.
Essa individualização é uma das explicações para a crise do sindicalismo?
Do sindicalismo e de outras instituições de intermediação na sociedade e do próprio Estado.
Admite que, até com o surgimento de movimentos inorgânicos, é difícil olhar para o futuro do espaço sindical?
Os movimentos que surgem como inorgânicos são, muitas vezes, apresentados como alternativa à organicidade. Não, o inorgânico é a expressão da falência do funcionamento do orgânico. Em várias áreas do pensamento, estou-me a lembrar da filosofia da cultura, mas podíamos falar de outras áreas, quando se fazem observações sobre as expressões de inorganicidade, é porque se sente que a sociedade está doente, não está a funcionar na sua estruturação e há manifestações que constituem perigo para a sociedade. Passando para o sindicalismo, diria que todos os gestos, todos os atos, todos os momentos de expressão de inorganicidade devem ser olhados com atenção e não devem ser combatidos, devem ser trabalhados no sentido de se tornarem orgânicos e com uma agenda concreta que seja percetível. Temos hoje uma sociedade mais fragmentada e atomizada. E as forças democráticas, a Esquerda em particular, tem tido dificuldades em pegar em alguns temas.
A Esquerda não tem soluções apelativas?
Aquilo a que se chama comummente a questão social, ou seja, a expressão das desigualdades, dos conflitos, das injustiças, etc., é de tal ordem que o social tem uma emergência imensa e as forças de Esquerda continuam a reconhecer e muito bem. Mas, a partir daí, é preciso trabalhar os assuntos um a um. Como é que se descasca cada um dos problemas no concreto da vida das pessoas? E a Esquerda tem tido algumas dificuldades. Por exemplo, no tema da imigração, tem tido dificuldades numa resposta muito concreta, que seja dinâmica. Tem tido também em áreas que chegam ao trabalho e ao emprego.
Os sindicatos estão a ter um papel ativo no acolhimento dos trabalhadores estrangeiros?
Vão fazendo algumas coisas, mas é muito insuficiente. Um quinto da população é imigrante e o país não está preparado para essa realidade. A imigração tem sido escandalosamente utilizada, não por todas as empresas mas na esmagadora maioria da economia portuguesa, para manutenção e aprofundamento da política de baixos salários. Isto é desastroso.
A tentativa de apropriação da luta das forças de segurança pelo Chega é mais um sinal de esvaziamento dos sindicatos? Como é que estes podem responder a essa apropriação?
O sindicalismo foi pulverizado a imensas organizações e essa é uma dificuldade. A outra dificuldade é a prática dos governantes se vangloriarem de que não respondem às reivindicações dos sindicatos. Isso vai acumulando cargas e depois as coisas rebentam. O que o Chega está a fazer...… Basta ler as experiências do que se está a passar na Europa e do que se passou no século passado. Para a instalação de um Estado autoritário, ganhar a simpatia das forças de segurança é um instrumento significativo. É preciso que os partidos democráticos não hesitem. É preciso dar atenção aos problemas dos profissionais da PSP, da GNR, da Administração Pública, do setor privado. Não é admissível hoje quaisquer atos que fechem o pluralismo. É preciso um movimento social que seja aberto, participado. Os sindicatos têm de ajudar nisto, mas a ação política também tem de favorecer o desenvolvimento das dinâmicas na agenda social.
A recente carta de antigos dirigentes da CGTP contra a influência do PCP e por uma maior independência tem cabimento nesse pluralismo?
Claro que tem. O Partido Comunista Português, de que fui militante muitos anos, e onde aprendi muito, tem um chão, do ponto de vista conceptual mas acima de tudo do ponto de vista do compromisso concreto com a sociedade, que nenhum outro partido tem, porque se liga muito a essa identidade com os trabalhadores. Lembremos que o Partido Comunista nasceu em Portugal impulsionado por sindicalistas, não é ao contrário. Na minha experiência, e devo ser sincero nisso, para mim sempre foi normal que o PCP, olhando para o movimento sindical, tivesse pretensões de ter hegemonia, de ter posições dominantes, e fui muitas vezes ator no processo. A questão não é a hegemonia, é o controlo organicista, o controlo a partir da organização e o isolamento.
Há um problema de afastamento de outras tendências dentro da CGTP?
O que se passa é que um conjunto de, julgo que são seis ou sete, já não me recordo, dirigentes sindicais que têm identificação na corrente sindical socialista não aceitam integrar a comissão executiva, porque não foi cumprido um conjunto de reivindicações que apresentavam. Não houve um afastamento, houve uma rutura face às condições apresentadas. É importante que isto seja resolvido rapidamente. Desde janeiro de 1977 até agora nunca tinha havido esta lacuna, esta ausência de socialistas. Por outro lado, há novas dinâmicas na sociedade. É preciso olhar para elas. Desejo muito que o Partido Comunista exista e dê o maior contributo possível para o desenvolvimento do sindicalismo, mas desejo que outros também o façam. Como outras instituições, a Igreja Católica teve um papel extraordinário durante décadas na mobilização de militantes católicos para o trabalho. O trabalho não é uma ocupação qualquer e isto precisa de ser relevado na sociedade. Eu bato palmas à geração mais jovem quando está convicta de que há muito mais vida para além do trabalho. E há. Mas quanto mais estiverem conscientes disto, mais vão lutar pelo trabalho. Como não há árvores das patacas, vai ser preciso valorizar o trabalho.
Qual é a semana de trabalho que defende: quatro dias, como está em voga, ou seis, como sucedeu na Grécia?
A semana de quatro dias é bem-vinda para todos aqueles que a possam utilizar, mas há que não confundir com uma estratégia mais global de redução dos horários de trabalho, que é urgente. Aumentar os horários de trabalho é criminoso, à luz do que hoje dispomos de tecnologias e evolução na distribuição da riqueza. Vejo esta situação na Grécia como uma aberração e a juventude vai revoltar-se.v
Ouça a entrevista completa este domingo ao meio-dia na TSF