Catarina Martins: "O Governo está a propor um país de biscateiros qualificados"

Catarina Martins, candidata a presidente da República
Pedro Gomes Almeida
Mestre em Linguística, atriz, ex-eurodeputada do Bloco de Esquerda, que liderou durante mais de uma década, e a única mulher com candidatura formalizada à Presidência da República, Catarina Martins diz-se empenhada numa Presidência de causas e em lançar pontes que permitam alcançar soluções para os problemas do país.
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O que pode efetivamente fazer um presidente para intervir no rumo do país, não lhe cabendo o exercício governativo? Já aludiu às presidências abertas de Mário Soares na habitação.
Sim, Mário Soares teve um trabalho que é bom lembrar. Numa altura em que na área metropolitana de Lisboa estava uma série de pessoas a viver em bairros muito precários, em bairros de barracas, nós gostávamos de dizer que isso foi o passado, não é, infelizmente, mas, na verdade, uma situação como aquelas nós não voltámos a ter, ou seja, com esta dimensão. E não só em Lisboa, mas sobretudo em Lisboa, no Porto também. E Mário Soares fez com as suas presidências abertas do direito à habitação uma causa. A magistratura de influência não é uma espécie de comentário permanente do jogo partidário. A magistratura de influência pode ser ir ter com as pessoas, com as causas das pessoas, e ser um motor destas grandes transformações. E eu acho que nós hoje estamos a precisar dessa Presidência de causas. Causas não no sentido de se substituir ao Parlamento na sua legislação, não no sentido de entrar no jogo partidário da conveniência de cada momento ou do comentário político, mas causa no sentido de fazer com que quem não é ouvido no país, seja ouvido. E que se possa lançar as pontes para pessoas conversarem sobre soluções para os nossos problemas.
Essa magistratura de influência não acaba por ser um bocadinho reduzida nos efeitos práticos?
Marcelo Rebelo de Sousa não resistiu a envolver-se muito no quotidiano da condução política e até da condução partidária. E acho que isso fragiliza a ideia de uma magistratura de influência que, sabendo pôr-se à margem dessa disputa, saiba dar mais fogo a uma causa que vem mais da sociedade civil e dar-lhe mais abertura. É por isso que eu acho, e tenho dito, que em matérias como a saúde, por exemplo, uma Presidência da República que a assuma como uma causa pode propor formas novas para olhar para o problema, reinventar, usando o melhor que nós temos. Assim como para a habitação. Nós precisamos de falar do problema da habitação de uma forma diferente. A política portuguesa está cheia de becos, neste momento. Ou seja, há muitas conversas que deixaram de ser possíveis e é preciso reinventar. Não basta dizer que é preciso travar a destruição que a direita ou a extrema-direita estão a tentar impor ao país. É preciso ouvir as pessoas para construir de uma nova forma o que nós achamos que são direitos em comunidade e o que nós achamos que é uma economia que sirva às pessoas. Eu acho que no mandato presidencial essa capacidade de ouvir as pessoas e de lhes dar espaço para colocarem os problemas de uma nova forma é muito necessária, porque a política está muito fechada sobre si própria e é preciso abri-la.
E, nesse sentido, seria desejável um reforço dos poderes da Presidência?
Não, eu até acho bizarro, confesso, que se discuta os poderes da Presidência. Quem se candidata à Presidência da República candidata-se para cumprir a Constituição. Ou seja, quem se candidata à Assembleia da República pode querer discutir se quer mudar a Constituição, se quer mudar os poderes presidenciais. E tem que vir dizer ao país o que é que, com esses poderes, pretende fazer. Eu dou duas garantias. Com o poder daquilo que em Portugal chamamos de magistratura de influência, ou seja, de criar diálogos no país, quero puxar pelas causas. As causas do trabalho digno, do trabalho com um salário que as pessoas percebam que as respeita, e que as novas gerações também possam querer ficar. Quero que a casa seja uma causa, porque é impossível que as pessoas não tenham direito a uma casa. As causas, é para isso que serve uma magistratura de influência, para ouvir muito e saber reinventar novas soluções para o país. E depois usarei os poderes constitucionais com a conta, peso e medida de conseguir duas coisas. Em primeiro lugar, equilibrar o país, acho que é muito importante quando há um Governo muito à direita, aliás, a fazer explícita e implicitamente acordos à extrema-direita, que haja uma Presidência à esquerda, acho que isso que equilibra a política, equilibra o país. É muito necessário e o veto político deve ser usado em questões tão fundamentais como alterações ao Código de Trabalho que diminuem os salários, e depois poderes como a dissolução da Assembleia da República. Confesso que tenho uma visão muito diferente da que teve Marcelo Rebelo de Sousa, porque eu acho que se banalizou a dissolução da Assembleia da República para permitir aos governos fazerem mais ou menos uma chantagem contra o Parlamento para verem quando é que lhes dá jeito eleições. E eu aí acho que uma Presidência da República que não entre nesse jogo e que obrigue o Parlamento a encontrar as soluções, vai seguramente pôr o Parlamento a discutir muito mais os problemas do país e o que fazer, e muito menos as conveniências partidárias.
Foi eleita eurodeputada há apenas um ano. Esta candidatura não defrauda a expectativa de quem votou em si?
É verdade que quando eu me candidatei ao Parlamento Europeu eu não me imaginava a candidatar à Presidência da República. Isso é público, eu achei que era bom que houvesse um nome como Sampaio da Nóvoa, mas isso não foi possível. Entretanto, o país mudou e houve umas eleições legislativas que colocaram muito mais perigosa esta deriva contra quem vive do seu trabalho. E eu achei, vendo o panorama que estava nas presidenciais, que era preciso um contributo para que se dissesse que pode ser diferente. Que nós não estamos condenados a viver cada vez pior e a ter um debate político cada vez mais deteriorado, ou seja, o debate político neste momento é um bocadinho sobre a inevitabilidade de cada vez ser tudo pior. E modestamente acho que posso dar o meu contributo para que não seja assim, para juntar forças, para fazer pontes, é o que eu fiz toda a minha vida.
Falemos do pacote laboral, já tem sido bastante crítica. Há alguma alteração que pudesse tornar este anteprojeto mais aceitável ou é de rejeitar totalmente?
É difícil dizer o que é que podia ser feito, porque todas as propostas do Governo vão num sentido errado. Nós vivemos num país de baixos salários. O que é que o Governo propõe? Uma medida que corta o pagamento de horas extraordinárias à maior parte das pessoas. Nós vivemos num país em que as gerações mais jovens sentem muitas vezes que aqui nunca terão um emprego que as respeite e que lhes permita sonhar, viver cá. E o que é que o Governo propõe? Que quem nunca teve um contrato sem termo possa nunca vir a ter, pode saltitar de empresa em empresa toda a vida, ou seja, o que o Governo está a propor é que este seja um país de biscateiros qualificados. Um presidente da República que aceita um pacote laboral que só propõe que os trabalhadores ganhem menos, tem de o recusar, sob pena de estar a trair todo o país, porque o país é construído por quem trabalha.
Perante um cenário de deriva à extrema-direita ou de uma governação extremista, demitiria o Governo, o mecanismo presidencial que nunca foi usado na nossa democracia?
Eu não estou a ver esse cenário numa Presidência, no cenário em que eu sou presidente da República, e não gosto muito de cenarizar em abstrato porque isso só tentar criar a ideia de que nós vamos estar nesse momento. Se eu for eleita presidente da República, quer dizer que esse momento nunca chegará. E eu vejo, por exemplo, como a política está a virar e pode virar ainda mais e eu estou cá para a virar. Repare-se que há uns tempos discutiam-se burcas, que era uma coisa absurda no nosso país, e agora o que estamos a discutir? O pagamento das horas extraordinárias, se o despedimento sem justa causa pode ser, se as pessoas podem baixar de categoria, se os jovens devem estar sempre a prazo, se o outsourcing deve ser a regra do trabalho. Está a virar, e está a virar porque há quem não se resigne a um debate político degradado e a um debate político do fatalismo da selva na política.
Não teme que a maior crise de sempre no Bloco de Esquerda possa contaminar o impacto da sua candidatura?
As candidaturas presidenciais são pessoais, eu não escondo o espaço político de onde venho, em que tive enormes responsabilidades. Também não escondo que uma das razões por que sou candidata presidencial não é seguramente uma questão partidária, não teria sentido, se fosse por isso então não me tinha apresentado, mas é porque acho que a esquerda precisa de conversar. E cá estou eu.
