Papa Francisco criou regras para avaliar a ação de padres e bispos na defesa das vítimas de abusos. Caso haja pedido, processo a Manuel Clemente será coordenado por bispo da Guarda.
Corpo do artigo
Alguns católicos portugueses querem que a Igreja "analise até às últimas consequências" o papel do cardeal D. Manuel Clemente ao não comunicar às autoridades judiciais as denúncias de abusos sexuais que lhe foram relatadas por uma vítima. "O cardeal não pode ser suspeito de encobrir um ou mais crimes. Que se saiba, a conversa com a vítima não foi feita em confissão e, por isso, as suspeitas tinham de ser comunicadas às autoridades e o padre em causa tinha de ser, no mínimo, suspenso", disse ao JN um sacerdote, sob anonimato, que diz estar "farto de ver todos os padres a serem tratados como possíveis abusadores de crianças".
Em causa está um encontro que D. Manuel Clemente teve em 2019 com uma vítima, que lhe contou ter sido abusada aos 11 anos por um sacerdote do patriarcado e de, após ter conhecimento dos abusos, o cardeal não ter comunicado o caso às autoridades policiais.
Bispos demitidos lá fora
Para clarificar o papel dos membros do clero na denúncia de abusos sexuais, o Papa Francisco publicou, em maio de 2019, "Vós sois a luz do Mundo", uma Carta Apostólica que propõe que se adotem "a nível universal, procedimentos tendentes a prevenir" este tipo de crimes que "atraiçoam a confiança dos fiéis" e que se investigue canonicamente o papel dos membros da Igreja.
Para iniciar o processo de análise à atuação, neste caso, de D. Manuel Clemente, uma ou várias pessoas têm de escrever uma carta a D. Ivo Scapolo, o núncio apostólico em Portugal, enviando informações sobre o processo em causa e solicitando a abertura de um processo. Ainda de acordo com a Carta Apostólica de Francisco, será feita uma "Assinalação", isto é, uma espécie de relato "respeitante às condutas" do prelado em causa. O Papa ressalva que ninguém deve sofrer "retaliações ou discriminações" por pedir esclarecimentos.
De acordo com o estipulado pelo documento, o processo de averiguações à ação do membro da Igreja propriamente dito será coordenado pelo bispo há mais tempo em funções na Província Eclesiástica de Lisboa. A Província é composta pelas dioceses de Santarém, Leiria/Fátima, Portalegre/Castelo Branco, Açores e Madeira e Guarda. De todos, o bispo há mais tempo em funções é D. Manuel da Rocha Felício, da Guarda, de 74 anos, que iniciou funções a 1 de dezembro de 2005.
Por toda a Europa, o documento está a ser usado para avaliar a ação de padres e bispos. Na Polónia, por exemplo, alguns bispos foram demitidos das funções episcopais após a própria igreja ter dado como provado que não defenderam devidamente as vítimas. No caso de membros do clero aposentados, a investigação canónica tem "obrigado" a que sejam feitas doações monetárias a fundos destinados às vítimas de abusos.
"É preciso que a Igreja portuguesa, padres e leigos, siga o que diz o Papa Francisco. Já passou o tempo em que apenas a boa vontade chegava. Agora é preciso apurar toda a verdade e responsabilizar quem não fez o que devia", finalizou uma mulher, católica "ativa" que pediu para não ser identificada.
Casos em investigação visam três pessoas e uma delas tem seis queixas
A Procuradoria-Geral da República recebeu 17 denúncias da Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja e abriu dez inquéritos, "sendo que um deles concentra seis das participações e outros dois, duas cada um". Assim, apenas três pessoas estão a ser investigadas. Quatro situações foram arquivadas: uma por prescrição, outra porque já houve uma condenação e uma terceira por falta de provas. Dois dos processos eram de Cascais e outro de Vila Real. Ontem, Marcelo Rebelo de Sousa disse que não vê razões para que tanto D. José Policarpo como D. Manuel Clemente tenham "querido ocultar da justiça" crimes.
A carta
Escrita pelo Papa
A Carta Apostólica "Vós sois a luz do Mundo" foi escrita pelo Papa Francisco, de Motu Proprio, isto é, diretamente por ele e decidida por ele. Um pormenor que lhe dá ainda mais importância.
Pede ações eficazes
Os danos causados pelos abusos sexuais atingem as vítimas e "lesam toda a comunidade de fiéis". O Papa pede "ações concretas e eficazes que envolvam todos na Igreja".
Omissões na lista
Devem ser investigados os abusos sexuais e delitos de "ações ou omissões tendentes a interferir ou contornar investigações civis ou canónicas, administrativas ou criminais, contra um clérigo ou um religioso".