O coordenador da Comissão para a Reforma da Saúde Pública, Mário Jorge Neves, demitiu-se em protesto contra a nova lei das ordens profissionais e o novo estatuto da Ordem dos Médicos. Acusa o Governo de estar "a escancarar as portas" para acabar com a carreira médica.
Corpo do artigo
Na carta de demissão de membro da Comissão para a Reforma da Saúde Pública, apresentada na terça-feira, Mário Jorge Neves considera as medidas aprovadas pelo Governo e promulgadas pelo Presidente da República "uma violenta e escandalosa tentativa de liquidação de elementares competências legais da Ordem dos Médicos e de ingerência política e governativa na autonomia e independência técnico-científica da profissão médica".
"A minha dignidade profissional como médico não me permite continuar a desempenhar essas funções porque isso significaria muito simplesmente colocar-me como cúmplice ativo desta ofensiva liquidacionista do Governo contra os médicos e o SNS", escreve o médico, coordenador da Comissão desde 2020, na missiva endereçada à secretária de Estado da Promoção da Saúde e à qual a CNN teve acesso.
Na carta, Jorge Neves expõe os motivos que o levaram a tomar a decisão, e que estão relacionados com o profundo desacordo com a nova lei-quadro das ordens profissionais e o novo estatuto da Ordem dos Médicos. Na nova legislação, "as disposições da livre concorrência sobrepõem-se a tudo, esmagando as garantias da qualidade do exercício da profissão médica e os níveis de segurança dos atos próprios dos médicos", acusa o especialista de saúde pública e de medicina do trabalho.
Capituação do PS "ao neoliberalismo mais extremista"
"Em nome dessa livre concorrência, até se chega ao ponto de possibilitar o exercício da profissão médica sem necessidade de inscrição na Ordem dos Médicos", diz, apontando que "estas medidas passam a ficar registadas como o exemplo dramático da capitulação político-ideológica do Partido Socialista ao neoliberalismo mais extremista de inspiração thatcheriana".
Entre as questões levantadas pelo novo estatuto, o médico sublinha a criação de "estágios": os médicos no início de carreira deixam de ser considerados médicos internos e passam a ser "estagiários"; o contrato de trabalho passa a ser um "contrato de estágio"; e o salário mensal passa a ser uma "bolsa de estágio mensal". "São disposições mais que suficientes para podermos concluir muito facilmente que Governo está a escancarar as portas para em seguida poder ser liquidada a Carreira Médica e ser estabelecida uma extrema precariedade laboral a nível dos médicos mais jovens", conclui Mário Jorge Neves.
Quanto à nova lei-quadro das ordens profissionais, o coordenador demissionário assevera que "as disposições visam instaurar o clima do comissariado político cavaquista inaugurado em 1988 com as nomeações político-partidárias para os vários níveis de gestão dos serviços públicos de saúde e que tem sido um decisivo factor de erosão e debilitamento do SNS.
"Existir um chamado provedor de serviços não médico, estabelecer a criação de um órgão de supervisão para regular o exercício da profissão médica, presidido por um cidadão não médico e constituído maioritariamente por não médicos, que vai ao extremo de intervir na definição de regras dos estágios profissionais e até das próprias especialidades e, ainda, estabelecer órgãos disciplinares integrados por não médicos, constituem um somatório monstruoso destas medidas governamentais", remata.