Fernanda e Benigno estiveram casados 57 anos. A pandemia atingiu os dois e interrompeu a história de amor que iniciaram aos 15 anos.
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Amou Benigno todos os dias, desde que o viu pela primeira vez, tinha 15 anos, era menina e permissão para namorar apenas aos 18, até que o viu pela última vez, em abril passado, no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, ela com 81 anos, ele com 82, os dois infetados, sabe-se lá onde, com covid-19. "O meu marido veio à beira da minha cama e pediu-me um beijinho, eu respondi que está bem mas que não podia ser por causa da pandemia. E ele disse, então dá-me as pontinhas dos dedos e eu dei, e foi assim que nos despedimos, pelas pontinhas dos dedos. Mal eu sabia que nunca mais o ia ver".
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Ainda não chorou, dona Fernanda. É mulher compacta e bonita, a laca fixa-lhe as ondas prateadas perfeitas do cabelo, o inesperado desfecho da vida do homem com quem foi casada 57 anos imobiliza-lhe nos olhos claros a tristeza. Não sabe onde tem as lágrimas, nem sabe se sabe bem o que aconteceu, pois se era ela quem estava internada e os doutores tinham mandado para casa o marido, Benigno Guerreiro, homem bondoso e alegre, dizem as netas, daqueles que enchem uma sala inteira, como é que tudo acabou assim?
No último março, o primeiro da pandemia em Portugal, estavam ambos "tão sossegados", sentiram-se mal, os dois e também a mais velha dos quatro filhos. "Era o corpo cansado, não podia das pernas, queria estender a roupa e não conseguia". Foram juntos para o hospital, Fernanda e Benigno, estava tudo mais ou menos bem, regressaram a casa, medicados. Ela haveria de ser internada dois dias depois, e ele, antigo funcionário da Shell, problemas de coração e de rins, quatro dias mais tarde. "Estive lá nove dias dias internada e, num deles, um doutor veio-me dizer do meu marido, que tinha morrido. Eu nem sabia que ele lá estava".
Nunca mais tirou o preto da roupa, dona Fernanda que casou vestida de verde menta - "o branco era para os ricos" - num dezembro "tão feliz" de 1962, e que tinha no vermelho vivo a sua cor preferida. Nunca mais cantou, não voltou a passear. Nunca soube o que era viver sem aquele homem algarvio que conheceu ainda rapaz, e que contrariou a teoria tantas vezes ouvida da boca de sua mãe, quando vivia ainda em Espinho. "A minha mãe dizia, uma rosa é linda mas tem muitos espinhos. Só que eu não tive espinhos, tive uma vida bonita." Teve quatro filhos, duas raparigas e dois rapazes, vivem quase todos ali ao pé, todos menos um, que a última crise, a da troika, levou um dos filhos para Inglaterra. "Mesmo longe, ligou ao pai, agora vê-se a cara das pessoas no telefone, e o pai disse-lhe "para onde vou, não venho mais"". Benigno não vem e Fernanda quer ir ter com ele, mas sabe que agora é ela o pilar. "Somos um por todos e todos por um, somos assim.
Covid-19: Primeira morte
Chamava-se Mário Veríssimo, tinha 80 anos, e estava internado há vários dias no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, um dos equipamentos de referência para tratar as pessoas infetadas com covid-19. A notícia caiu assim, quase ao fim da tarde do dia 16 de março do ano passado. A mensageira foi a ministra da Saúde, Marta Temido, que explicou que a vítima tinha várias doenças associadas, mas o boletim clínico não atenuava o aviso dado nesse mesmo dia: o número de mortes iria aumentar.
Amigo de Jesus
Veríssimo era amigo de Jorge Jesus, fora massagista do Estrela da Amadora, extinto clube de futebol que não deixou de prestar-lhe homenagem no Twitter: "Lutou, batalhou, deu o melhor de si, mas não conseguiu driblar o maldito coronavírus que acabou por derrotá-lo num último desafio".