Em que casas vamos habitar? Como e onde vamos viver? A pandemia trouxe consigo interrogações que terão resposta pronta mais breve do que o previsto. E acelerou conceitos que se vinham alterando lentamente. O futuro chegou sem ter pedido licença para entrar.
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Imagine uma casa que se move automaticamente 180 graus em busca do sol para captar energia limpa e amiga do ambiente. Que permite poupar mais de cinco mil euros anuais em gastos de eletricidade. Que emite menos 32 toneladas de dióxido de carbono para a atmosfera. Que adapta as diferentes divisões às necessidades e rotinas de quem a habita. Que recebe ordens via smartphone. Que é totalmente autónoma. Que é atrativa arquitetonicamente. Já imaginou? Não é preciso imaginá-la porque ela existe mesmo. Está instalada desde 2017 em Matosinhos, a poucos metros do edifício dos Paços do Concelho, e foi pensada no âmbito de um projeto com génese na Universidade do Porto, batizado "Casas em Movimento", que valeu ao arquiteto Manuel Vieira Lopes o prémio Born From Knowledge, da Agência Nacional de Inovação.
"São as casas do futuro. Deveriam ser replicadas em Portugal porque reúnem todas as condições para responder aos desafios ambientais, e não só, que estamos a viver e que a pandemia veio reforçar", acredita Manuel Vieira Lopes. A casa-modelo instalada em Matosinhos, que antes da covid podia ser visitada por quem quisesse conhecê-la por dentro, não é apenas ficção ou antevisão futurista quase ficção científica.
O teletrabalho veio para ficar e há que pensar em soluções que estejam atentas ao facto de as habitações terem de se adaptar aos seus utilizadores
"Pelo contrário, é a arquitetura tal qual tem que ser pensada imediatamente. A pandemia de covid-19 levou mais pessoas a trabalhar em casa, a consumir mais energia, a ter outro tipo de vivências. O teletrabalho veio para ficar e há que pensar em soluções que estejam atentas ao facto de as habitações terem de se adaptar aos seus utilizadores, sempre com uma preocupação ambiental muito concreta", defende Manuel Vieira Lopes.
Se por cá são raros os exemplos de casas com vista para o futuro, internacionalmente há casos em que a realidade ultrapassou o limite das ideias colocadas em papel. Na Noruega, está a nascer o Powerhouse Telemark, edifício de escritórios com dez andares que, segundo os promotores do projeto, será o "prédio mais energético do Norte do Mundo" quando estiver concluído.
A ideia da empresa Snohetta, ganha forma na cidade de Porsgrunn, 150 quilómetros a sul de Oslo, a capital norueguesa, e assemelha-se visualmente a um diamante gigante com 6500 metros quadrados. Capta, liberta e retém energia solar, tornando assim toda a estrutura independente do ponto de vista energético.
"Acreditamos que este edifício inspirará os empreendedores imobiliários comerciais em todo o Mundo a ampliar os limites do que os edifícios podem realizar", refere Kjetil Tradal Thorsen, sócio-fundador da Snahetta, no site da empresa. "Os edifícios que produzem a mesma quantidade de energia que gastam, ou mesmo que produzem mais do que a que gastam poderiam ser uma contribuição importante para reduzir o consumo energético global e, consequentemente, as emissões de gases de efeito estufa", completa Kim Robert Lis, diretor administrativo da Powerhouse.
As pandemias, as revoluções e as guerras aceleram transformações que muitas vezes já estavam a acontecer mas não eram tomadas como algo regula
O arquiteto Nuno Sampaio, diretor executivo da Casa da Arquitetura, acredita que a pandemia trouxe novas rotinas que terão influência no modo como encaramos o espaço concreto que é a casa em que habitamos. O que não o surpreendeu, aliás. "As pandemias, as revoluções e as guerras aceleram transformações que muitas vezes já estavam a acontecer mas não eram tomadas como algo regular", lembra.
Para Nuno Sampaio, as adaptações à conta da pandemia não foram apenas temporárias e tomarão conta das rotinas a partir do momento em que o Mundo retomar a normalidade. "As reuniões por videoconferência são um bom exemplo. Se antes não eram frequentes, hoje são banais e no futuro serão mais regulares ainda. O que é excelente, porque são mais rentáveis e evitam deslocações, logo reduzem a emissão de gases carbónicos", descreve.
E depois há pequenos grandes pormenores que advirão do tempo cada vez mais alargado que tenderemos a passar entre quatro paredes. "A casa terá que ter áreas específicas que sejam apenas dedicadas ao trabalho, não somente adaptações. O isolamento das habitações, por outro lado, terá que ser reforçado. Até as varandas, que são consideradas área bruta de construção e por isso não muito tidas em conta nos projetos arquitetónicos, terão que ter outra regulamentação porque daqui em diante serão a principal ponte entre o interior da casa e contacto com o exterior", aponta Nuno Sampaio, para quem, a nível geral, uma mudança de fundo será inevitável: "A transferência para áreas menos urbanas, com qualidade de vida acrescida." No fundo, a concretização prática da teoria do "regresso ao campo", como há muito defende o arquiteto holandês Rem Koolhaas, autor, por exemplo, do projeto da Casa da Música, no Porto.
Reforçar a aposta nos painéis fotovoltaicos
Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero, acredita igualmente que "o tempo passado dentro de casa" ficará como marca forte no pós-pandemia. O que tem prós e contras. À poupança ambiental motivada pelo uso reduzido do automóvel, a "transferência de gastos energéticos do escritório para o cenário doméstico" é algo a ter em conta. "Será uma oportunidade para se reforçar a aposta nos painéis fotovoltaicos. Sobretudo porque os consumos de eletricidade serão mais elevados, não apenas pelo uso frequente do computador mas, agora que aí está o inverno, dos aparelhos de climatização como aquecedores e ar condicionado", explica.
Em resumo, para Francisco Ferreira as casas passarão a ser pensadas e projetadas tendo em conta todas as alterações que se adivinham breves. Porque as construções do passado "poderão não ter capacidade de dar resposta" a questões que antes da pandemia nem sequer se colocavam. E também porque o "ambiente e a poupança ambiental" serão expressões de ordem quando a covid desaparecer e forem retomados os dias de (quase) sempre.