Saldo de gerência ficou quase a zeros. Verba foi usada em equipamentos de proteção e ventiladores. Há 150 corporações à espera de nova ambulância, mas não há data para retomar plano.
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As contas do INEM sofreram, em 2020, um "rombo" de cerca de 90 milhões de euros, que está a impedir a concretização de investimentos previstos, como a renovação das ambulâncias afetas aos bombeiros. No ano passado, ficaram por substituir 75 viaturas e este ano são outras tantas. O JN sabe que praticamente toda a verba dos saldos de gerência acumulados dos últimos anos do instituto foi canalizada para a compra de equipamentos de proteção individual (EPI) e ventiladores para ajudar o Serviço Nacional de Saúde na resposta à pandemia.
E é precisamente daquele "bolso" que o INEM retira, desde 2017, alguns milhões de euros por ano para renovar as ambulâncias PEM (Posto de Emergência Médica), que estão sediadas nos bombeiros, e para abrir novas, de modo a melhorar a cobertura do socorro a nível nacional. O INEM tinha em saldo de gerência cerca de 90 milhões de euros e, no ano passado, ficou reduzido a menos de 200 mil euros, apurou o JN.
Maior fatia foi para a DGS
As transferências do INEM para outras entidades da saúde estão expostas num documento, publicado pela empresa que faz a certificação das contas do instituto. Assim, entre março e abril de 2020, o INEM entregou 19 milhões de euros do saldo de gerência à Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) e, por despachos do secretário de Estado do Orçamento, foi chamado a contribuir com 3,7 milhões de euros para o Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge e com 67,2 milhões para a Direção-Geral da Saúde.
Em resposta ao JN, o INEM não se pronunciou sobre o "rombo" no saldo de gerência, mas admite que a situação pandémica obrigou o INEM (e outras entidades do Ministério da Saúde) a canalizar "recursos financeiros significativos para áreas não previstas inicialmente no orçamento de 2020".
O INEM refere ainda que "foi chamado a dar o seu contributo para este esforço coletivo", que visou possibilitar uma resposta adequada às necessidades em cuidados de saúde resultantes do novo coronavírus, através da criação de uma reserva estratégica de EPI e da aquisição de diversos equipamentos, nomeadamente, ventiladores. "Este novo cenário originou, naturalmente, a necessidade de recalendarização dos investimentos que estavam previstos", acrescenta. Deste modo, prossegue o INEM, "o Plano de Renovação da Frota de Ambulâncias afetas aos Postos de Emergência Médica foi suspenso temporariamente, ainda em 2020".
Plano ficou a meio
Aquele plano foi iniciado em 2017 e previa a substituição da totalidade da frota (341 ambulâncias) em cinco anos. Entre 2017 e 2019, foram renovadas 195 PEM, disse o INEM. Mas, no verão passado, as 75 corporações que já estavam listadas para a substituição da respetiva ambulância foram informadas de que o plano tinha sido suspenso e continuam à espera de nova data (ler ao lado).
Este ano, há mais 75 corporações com as expectativas defraudadas. Na prática, terão de aguardar que o plano seja retomado e esperar a sua vez. O INEM garante estar "a desenvolver todos os esforços para que a renovação das ambulâncias em funcionamento nos PEM possa ser retomada tão rapidamente quanto possível", mas não se compromete com qualquer data nem dá garantias de que tal possa acontecer ainda este ano. Questionado pelo JN sobre as contas do INEM e o retomar do plano de renovação da frota, o Ministério da Saúde não respondeu em tempo útil.
Ao que o JN sabe, de 2020 para 2021 transitaram para saldo de gerência do instituto cerca de 10 milhões de euros. Mas não é líquido que a verba possa ser usada nos próximos meses porque ainda há muitos imponderáveis sobre a mesa.
Além da pandemia, o INEM poderá ter um aumento da despesa com a manutenção da frota que fica mais desgastada a cada ano que passa e uma potencial quebra de receita, uma vez que o orçamento depende quase em exclusivo de uma taxa associada aos seguros. A necessária autorização das Finanças para utilização do saldo de gerência, que, em regra, leva meses a ser assinada, poderá ser mais um obstáculo.
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Concurso a correr
Para a renovação da frota interna, também envelhecida, o INEM tem em curso um processo de aquisição, por concurso público, de 45 novas ambulâncias, cuja conclusão está prevista para outubro de 2021. Segundo o instituto, permitirão renovar cerca de um terço do total de viaturas atualmente em atividade. Quanto à abertura de novos PEM, para melhorar a cobertura de emergência médica no país, não há previsão. Entre 2017 e 2019, abriram 53 novos PEM, disse o INEM.
Plano mais ágil
A renovação da frota de Postos de Emergência Médica já não é feita por concurso público. O plano iniciado em 2017, agora suspenso, prevê a assinatura de protocolos com as corporações, através dos quais o INEM transfere 50 mil euros para a aquisição, manutenção e seguro de cada uma das ambulâncias e paga outras despesas a partir do primeiro ano. A alteração permitiu agilizar o processo, já que os concursos levam anos a ser finalizados.
Reação
Seguradores pedem mais transparência sobre verba
A Associação Portuguesa de Seguradores (APS) pede mais transparência sobre a forma como a taxa INEM paga pelos tomadores de seguros é utilizada. Questionada pelo JN sobre o uso de verbas destinadas à emergência médica para outros fins, nomeadamente a compra de ventiladores, a APS refere que "não tem qualquer informação sobre o destino dado a estas verbas, mas considera que, sendo uma taxa suportada pelos contribuintes que têm seguros, deveria haver uma maior transparência sobre a forma como é utilizada".
A associação lembra ainda que há vários anos vem questionando o Governo e o Parlamento sobre a equidade e até a constitucionalidade desta taxa, uma vez que o INEM não presta assistência apenas às pessoas que têm seguros, mas a toda a população, e só os que têm seguro estão a financiá-lo.
Os tomadores dos seguros dos ramos vida, saúde, automóvel e acidentes pagam uma taxa de 2% por cada contrato de seguro para financiar o INEM. Em 2020, foram transferidos cerca de 130 milhões de euros, revelou a APS. Mas o valor nunca é usado na totalidade.
Todos os anos, a última tranche chega às contas do instituto mesmo no final de dezembro, o que impede a sua transformação em despesa. A verba transita para o ano seguinte em saldo de gerência. Foi desta forma que o instituto acumulou os 90 milhões de euros que, em 2020, foram transferidos para outras entidades.
Ainda que as últimas leis do Orçamento do Estado consagrem que os saldos de execução orçamental das entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde (exceto os SPMS) sejam automaticamente integrados na ACSS, no caso do INEM tal nunca tinha ocorrido.
Testemunhos
Bombeiros aflitos com ambulâncias velhas
O ofício que chegou às mãos de Paulo Silva, comandante dos Bombeiros de Mesão Frio, em meados de 2020, foi um balde de água fria. A carta do INEM informava que, por força da resposta à pandemia, o plano de renovação da frota estava suspenso devido à falta de cobertura orçamental. Resultado: a ambulância que responde às chamadas do INEM no concelho, e que já leva 13 anos e quase meio milhão de quilómetros, teria de manter-se ao serviço. E assim continua.
"Estávamos na lista para substituição da ambulância em 2020, agora não sei quando vai ser", lamenta o comandante da corporação, assegurando que a viatura "vai N vezes à oficina".
A informação prestada pelo INEM sobre o contributo que teve de dar para a Reserva Estratégica Nacional de equipamentos de proteção individual, à qual os bombeiros também tiveram acesso, não colhe junto de Paulo Silva. "Cheguei a ter de ir a Vila Real [45 quilómetros] buscar meia dúzia de luvas. É uma dupla aldrabice. Nem carro nem equipamentos", atira.
Risco
O mesmo ofício chegou às mãos de António Sutil, comandante dos Bombeiros Voluntários de Vimioso. A PEM daquela corporação, com matrícula de 2008, e também meio milhão de quilómetros percorridos em estradas tortuosas, estava na calha para ser renovada em 2020 mas terá de aguardar por melhores dias.
"Foi uma desilusão", confessa. Naquela região, "é difícil haver serviços com menos de 120 quilómetros" e "a segurança das equipas e dos doentes fica comprometida" com uma ambulância que já se encontra muito desgastada. Só não está pior porque "o pessoal estima-a muito", garante António Sutil. Mas é impossível evitar as idas frequentes à oficina que correspondem a horas de inoperacionalidade do meio de emergência.
Nos voluntários de Barcelinhos, a história repete-se. O comandante José Beleza também foi informado da suspensão do plano de renovação da frota, mas compreende a situação. "É um ano diferente, com a pandemia tudo se alterou", afirma. A ambulância PEM da corporação, com menos anos e quilómetros do que as de Vimioso e Mesão Frio, "cumpre os requisitos de operacionalidade". Ainda assim, já passou o prazo para renovação, pelo que José Beleza espera que "o plano seja retomado logo que possível".
As PEM de Castelo de Paiva, Caminha, Setúbal, Póvoa de Lanhoso, Baltar, Sines, Mealhada, Silves, Marco de Canaveses, Feira, Viana do Castelo, Grândola e muitas outras, num total de 75, estavam na lista para serem substituídas em 2020. Outras 75 corporações, com indicação para renovação da PEM este ano, terão de aguardar ainda mais até chegar a sua vez.