Provedoria recomendou mudar tabelas de inaptidões dos concursos de admissão ao Estado, mas apelos caem em saco roto. Regras já têm 20 anos.
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O Ministério da Defesa Nacional (MDN) recusa acatar uma recomendação da Provedoria de Justiça para eliminar das tabelas de inaptidão, usadas nos concursos de admissão de pessoal, a exclusão de candidatos seropositivos. Também o Ministério da Administração Interna (MAI) mantém igual exclusão nas forças de segurança, apesar de se ter comprometido a pôr-lhe um fim. Em causa estão regras de seleção inalteradas há duas décadas, consideradas discriminatórias e sem fundamento científico.
Desde 2012, dois provedores já chamaram a atenção de governos diferentes para que se acabem com essas violações de direitos fundamentais. Porém, com muito pouco sucesso. Uma terceira insistência pode estar a caminho, tendo em conta que Maria Lúcia Amaral, atual provedora, está a analisar uma queixa contra o concurso de admissão de guardas florestais que, tal como o JN avançou em primeira mão há três meses, mantém esta discriminação.
A tabela de inaptidões do concurso travava o acesso de pessoas com vírus da imunodeficiência humana (VIH), acne ou falta de dentes, entre outros. Após a notícia, em abril, a GNR fez uma correção cirúrgica, eliminando apenas a regra que impedia a candidatura de mulheres que estivessem grávidas aquando das provas, reabrindo o concurso por 10 dias.
Justiça foi rápida a acatar
Ao JN, a Provedoria assegurou que a denúncia contra o processo dos guardas florestais será analisada "no âmbito do acompanhamento que está a realizar ao seguimento dado à recomendação n.º 7/B/2012" e não como se de um novo processo se tratasse.
Aquela recomendação partiu do ex-provedor Alfredo José de Sousa, pai da ex-ministra do MAI Constança Urbano de Sousa (2015-2017), e foi reforçada pelo seu sucessor, José Faria da Costa, que também recebeu uma queixa semelhante [ler texto ao lado].
"Até ao momento, apenas o Ministério da Justiça diligenciou no sentido de atender à recomendação. Da parte do Ministério da Defesa Nacional a resposta foi negativa e ainda desconhecemos a resposta definitiva do Ministério da Administração Interna", explicou a Provedoria. O MDN disse ao JN que as Forças Armadas aplicam o "guia de incapacidades médicas da NATO", que "inclui a infeção por VIH no capítulo das doenças incapacitantes". Alegou ainda que "o empenhamento operacional", como é o caso das Forças Nacionais Destacadas, expõe os militares a fatores extremos, entre eles a "reduzida" qualidade dos recursos de saúde.
Já o MAI destacou a alteração do concurso de guardas florestais e adiantou que foi enviada uma resposta à Provedoria - que Maria Lúcia Amaral não considerou um compromisso para acabar com as referidas tabelas em toda a linha.
Ana Duarte, porta-voz do Centro Anti-Discriminação VIH, lamenta este cenário, que atribui a "uma linha de maior conservadorismo que nada tem de científica". "Em termos de esperança de vida, a das pessoas com VIH é equivalente a quem não tem, a robustez física é igual e o nível de faltas ao trabalho é muito inferior. No caso de feridas abertas, com a nova medicação, não há qualquer risco de transmissão. Não se entende estas tabelas, sem fundamentação clínica e sem ganhos para a saúde pública", conclui.
Duas advertências junto de governos em menos de cinco anos
Na origem da recomendação de 2012 estão ilegalidades detetadas nos requisitos de ingresso no curso de oficiais de polícia, ministrado pelo Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna (ISCPSI). As regras impunham exames de diagnóstico à infeção pelo VIH, vírus da hepatite B/C e sífilis, "cujo resultado positivo era tido como condição de exclusão da respetiva candidatura".
O ISCPSI alegou "liberdade" em fixar os requisitos de admissão que achasse necessário, como se pode ler nas respostas enviadas à Provedoria. Mas o provedor pediu a sua alteração, tendo em conta que não tinham qualquer base científica. Alfredo José de Sousa frisou, com base nas instâncias internacionais médicas, e na própria Ordem dos Médicos, que "o rastreio obrigatório" revela-se, "até demonstração científica em contrário, como prática ineficaz na prevenção da propagação das doenças". O provedor recomendou então "aos ministros da Administração Interna, Defesa Nacional e da Justiça a eliminação de tabelas de aptidão que, em abstrato e de maneira automática, impedem que portadores de VIH tenham acesso às respetivas carreiras", explicou a mesma fonte ao JN. Tendo em conta a recorrência do uso das tabelas, em 2017, já no mandato de José Faria da Costa, a Provedoria "recebeu nova queixa sobre o mesmo assunto e de novo se dirigiu aos três ministérios".