Dois Anos de Pandemia: investigadores saíram da reserva para a frente de combate à covid-19
Deram a mão aos hospitais quando não havia testes e criaram ferramentas para contornar dificuldades.
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Não são profissionais de saúde, mas também foram chamados à linha da frente. Em março de 2020, cientistas de todo o país largaram os seus projetos e colocaram o saber e experiência ao serviço de um bem comum - combater a pandemia. Fizeram milhares de testes de diagnóstico nos hospitais e em lares, criaram ventiladores quando estas máquinas escasseavam no mercado internacional, desenvolveram aplicações para controlar a disseminação da infeção, puseram a inteligência artificial a ajudar os médicos, estudaram a resposta imunitária da população e continuam de olhos postos na efetividade das vacinas.
O Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM), o Instituto Gulbenkian Ciência (IGC) e o Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC) rebobinaram o filme de dois anos muito intensos. Houve vitórias e frustrações. Mas ficou a sensação de dever cumprido.
Testagem nos lares foi "contributo incrível"
A 10 de março de 2020, Maria Manuel Mota recebeu o telefonema que revolucionaria o curso da instituição que lidera nos meses seguintes. Era um chefe de serviço de um hospital de Lisboa preocupado com a falta de testes para diagnosticar o Sars-Cov-2 nas equipas. Já usavam a tecnologia PCR no iMM e Maria Manuel Mota disponibilizou-se para ajudar. Reuniu uma equipa, foram à procura de reagentes no mercado nacional e arrancaram, seguindo as orientações internacionais. Rapidamente obtiveram luz verde das autoridades de saúde e ciência e vinte dias depois daquele telefonema estavam a testar oficialmente as primeiras amostras, recorda a investigadora.
Um passo em tempo recorde que permitiu dar uma mão aos hospitais e logo estender a outra aos lares de idosos. Ao mesmo tempo, os investigadores descreveram num documento todos os procedimentos para fazer os testes e distribuíram-no por outros centros de investigação. Em abril, já havia 22 instituições científicas a fazer testes para os lares. A diretora executiva do iMM é peremptória: "foi um contributo incrível naquela altura".
O projeto cresceu, envolveu mais de cem voluntários, e, com o apoio da Fundação Francisco Manuel dos Santos, montaram um laboratório com capacidade para fazer três mil testes por dia. Atualmente, o iMM é responsável pela testagem nos lares de 88 concelhos. "Tenho a certeza que evitámos imensos surtos", assegura Maria Manuel Mota.
Os meses passaram e o iMM viria a desenvolver mais duas "task force". Uma, em conjunto com outras instituições da zona de Lisboa, para fazer os rastreios serológicos nacionais e perceber que percentagem da população já estava imune ao vírus. Outra, com os olhos postos no futuro: a criação de um biobanco com amostras de doentes infetados do Hospital de Santa Maria. Neste momento tem "mais de 15 mil amostras de doentes com historial clínico associado", conta a investigadora. E já há estudos científicos com base nas amostras ali conservadas.
Uma app mal amada, ventiladores e robô
"O exército estava preparado". A expressão pode não ser a mais feliz em tempo de guerra, mas Rui Carlos Oliveira usa-a para enfatizar como o investimento ao longo dos anos na ciência é decisivo em momentos críticos. Os exemplos das vacinas e dos testes de diagnóstico são os mais falados, mas não são únicos. Dos equipamentos hospitalares à inteligência artificial, a ciência está sempre presente. Mas nem sempre corre tudo bem. Um dos projetos mais visíveis do instituto nos últimos dois anos é também um dos que lhe causa maior deceção.
O administrador do INESC TEC, no Porto, é o rosto da "Stayawaycovid", a aplicação de telemóvel para alertar os utilizadores sobre os contactos de risco.
Desenvolvida em seis meses - um tempo recorde que só foi possível graças "às centenas de cientistas que já tinham trabalhado anteriormente naquela área" - a app não teve o resultado esperado porque não recebia dos serviços de saúde a informação sobre os infetados. Chegou a ultrapassar os três milhões de "downloads", mas sem utilidade prática, permanece moribunda à espera de ser definitivamente encerrada.
Rapidez esbarra na burocracia
O PNEUMA, um ventilador alternativo de baixo custo para usar como último recurso em doentes com dificuldades respiratórias, foi outro projeto do INESC TEC que nasceu num abrir e fechar de olhos, numa altura em que a falta destes equipamentos era uma das maiores preocupações da comunidade médica. "Em dois meses conseguimos produzir centenas de ventiladores que foram entregues à ARS Norte", recorda Rui Carlos Oliveira. Também aqui ficou um amargo de boca. O processo esbarrou na certificação dos ventiladores como dispositivo médico e os equipamentos não chegaram a ser usados. "Portugal tem uma burocracia exasperante", critica. Fica a esperança: talvez "alguém tenha aprendido alguma coisa" e "da próxima vez o caminho das pedras seja mais fácil".
As ideias que iam surgindo nos vários departamentos de investigação do instituto passaram do papel à prática sem demora. Um robot para desinfeção do ar e de superfícies contaminadas com o SARS-CoV-2 começou a ser testado em julho de 2020 no Centro Hospitalar de S. João e, mais tarde, no aeroporto do Porto. A tecnologia do RADAR acabou por ser licenciada a uma empresa.
A utilização da inteligência artificial para análise de raio X torácicos de doentes infetados, com o objetivo de ajudar o diagnóstico médico foi outro projeto, desenvolvido em conjunto com a ARS Norte e o Hospital de Gaia, que chegou a bom porto.
Variantes e vacinas seguidas à lupa
Tal como o iMM, no início o Instituto Gulbenkian Ciência (IGC) começou por dar a mão aos hospitais que não tinham capacidade laboratorial para realizar testes PCR, nomeadamente o Amadora-Sintra e o Centro Hospitalar Lisboa Ocidental. Mas novos projetos se precipitaram. Em colaboração com o INSA, os investigadores trabalharam na sequênciação do vírus e no rastreio de variantes de preocupação, um projeto que se mantém. Além da radiografia do presente, este rastreio tem um lado preditivo. "Temos investigadores a tentar perceber como pode evoluir o vírus no futuro, com base na evolução do passado", resume Jocelyne Demengeot, imunologista e investigadora principal do IGC.
O teste com amostra de saliva, desenvolvido em colaboração com os hospitais D. Estefânia e Amadora-Sintra para tornar o diagnóstico menos massacrante, sobretudo para as crianças, foi outro foco do IGC. Com uma sensibilidade semelhante à dos PCR com amostras nasofaríngeas e superior à dos testes rápidos de antigénio, o teste de saliva do IGC acabou por ser o vencedor do Grande Prémio da Sociedade Portuguesa de Pediatria. Continua a ser usado no instituto para monitorizar a infeção nos colaboradores.
O IGC apostou também em seguir a resposta imunológica ao vírus. Primeiro avançou com testes serológicos, em Almeirim, e depois criou o programa Info Vac, que monitoriza a efetividade das vacinas em diferentes grupos populacionais. O projeto acompanha profissionais de saúde, idosos residentes em lares, doentes oncológicos e professores, num total de cerca de três mil pessoas.
Já se sabe que a idade e a utilização de imunossupressores comprometem a eficácia das vacinas, mas Jocelyne Demengeot quer chegar mais longe e contribuir para que as estratégias de vacinação sejam mais personalizadas. "No futuro, a minha ambição é, medindo um ou dois parâmetros, ser capaz de dizer que a pessoa tal precisa de um reforço da vacina em dois ou três meses ou não precisa", confessa a imunologista.
Pormenores
Marinha ajudou
Pensado na Marinha e desenvolvido com uma empresa portuguesa, o ventilador mecânico Nortada X-95 entrou em fase de produção no final do ano passado, depois de ter passado nos testes de certificação feitos na Alemanha.
Apoio à investigação
A Fundação para a Ciência e Tecnologia, em colaboração com a Agência de Investigação Clínica e Inovação Biomédica, abriu uma linha de financiamento especial para projetos de investigação que dessem resposta célere às necessidades do Serviço Nacional de Saúde. O "Research4Covid19" apoiou 66 projetos na primeira fase da pandemia.
"Decidimos que queríamos fazer testes [de diagnóstico à covid-19] a um preço justo, o que foi um contributo para que o setor privado descesse o valor cobrado ao Estado"