O antigo deputado do PCP e atual conselheiro de Estado, Domingos Abrantes, relatou ao JN a sua experiência enquanto opositor à ditadura. Em 1961, fugiu da prisão de Caxias a bordo do carro de Salazar. Só quando viu os 19 tiros serem rechaçados teve a certeza de que a viatura era blindada.
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Cresceu no Poço do Bispo, um bairro "de miséria extrema" em Lisboa e, aos 11 anos, começou a trabalhar numa fábrica. A mãe também era operária, o irmão e vários colegas militavam no PCP. Aos 18 anos, também Domingos Abrantes se juntou ao partido. "Foi a maior decisão da minha vida", refere, quase 70 anos depois.
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Durante o Estado Novo, a maior preocupação de qualquer comunista era "evitar a polícia e os bufos". Por esse motivo, Domingos mergulhou na clandestinidade, mudando constantemente de residência. E, mesmo entre membros do PCP, não usava o nome próprio: "Cada camarada tinha um pseudónimo. Eu fui Zé, Augusto, David, Sérgio...".
Mas, em 1959, Domingos foi preso. Levado para o Aljube, em Lisboa, sofreu a tortura do sono e esteve "quase seis meses completamente isolado". Já na prisão de Caxias, preparou a própria fuga durante 19 meses. E, em dezembro de 1961, teria sucesso: "Fugi no carro blindado do Salazar, com mais sete companheiros", relata.
"Durou um minuto mas parecia uma eternidade"
O facto de a cadeia ser controlada pela PIDE e de a operação ter ocorrido à luz do dia deu à fuga "uma dimensão política enorme". A viatura do ditador, trazida por um militante comunista infiltrado na prisão, atribuiu-lhe ainda maior simbolismo.
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"Havia a ideia de que o carro era blindado, mas isso só se provaria na hora da verdade", recorda Domingos, com humor. "Foi atingido com 19 tiros de espingarda e provou-se mesmo que era". Juntamente com a fuga de Peniche - um ano antes, e na qual participou Cunhal -, a escapadela de Caxias foi a que mais abalou o regime.
"A fuga demorou 19 meses a preparar, mas a sua execução levou um minuto - embora, para quem vai fugir, um minuto pareça uma eternidade", relata o comunista. "E os carcereiros, do primeiro ao último segundo, viram a fuga. Desenrolou-se nas barbas deles, e eles mostraram-se completamente incapazes de atuar. A sucessão de fases era de tal forma rápida que não lhes deu essa capacidade", acrescenta.
A operação só foi possível porque um membro do partido conseguiu infiltrar-se na cadeia, alegando fidelidade ao regime. Foi ele quem teve um papel preponderante na fuga: "Ganhou a confiança dos carcereiros, ao ponto de poder andar pela cadeia pelo carro", conta Domingos.
O processo teve "uma enorme complexidade", até por ter sido diferente das fugas mais comuns. "O carro é que ia ter connosco, não éramos nós que íamos ter com o carro".
"Tortura do sono é inimaginável para quem não a viveu"
Menos de quatro anos depois, contudo, Domingos Abrantes seria novamente capturado. Levado para a prisão de Peniche, só sairia de lá ao fim de oito anos, em março de 1973. Casou na prisão, em 1969, mas não o deixavam corresponder-se com a mulher. E seria, uma vez mais, submetido à tortura do sono.
"Foi uma dose de 16 dias seguidos. Chega-se a um estado físico calamitoso. As pernas incham, a pele racha, o sangue corre... É uma coisa inimaginável para quem não passou por isso", explica o comunista.
A maior alegria de Domingos Abrantes enquanto militante foi o 25 de Abril de 1974. "Foi a grande aspiração de várias gerações, para a qual deram o melhor das suas vidas. Foi uma alegria imensa ver o povo cheio de alegria pela conquista da liberdade, empenhado em construir um país novo, diferente, próspero e solidário. É um momento inesquecível", afiança.
Outra grande memória que guarda é ter conseguido resistir à tortura: "Podem torturar-nos, espancar-nos, assassinar-nos, mas não têm o poder de nos obrigar a dizer o que não queremos. Enche-nos de alegria, por termos honrado a confiança que depositaram em nós, a lealdade para com os companheiros e [por ser] a prova de que, afinal, as convicções são mais fortes do que a violência".
"Comunismo não só é possível como é necessário"
Aos 85 anos, Domingos continua a acreditar no ideal comunista: face às desigualdades "obscenas", esse futuro "não só é possível como é necessário", sustenta.
"Somos um partido que tem uma característica, e é por isso que temos 100 anos: os militantes empenham-se numa batalha por ideias e por um mundo que podem não ver, mas é seu dever contribuir para que esse mundo venha", afirma o antigo deputado.
Domingos Abrantes mantém a convicção de uma vida - a de que nunca ninguém conseguirá "convencer os povos" de que este "mundo de guerras, de falta de respeito pela soberania dos povos, de destruições maciças de vidas humanas e de bens materiais só para enriquecer os grandes dos armamentos" é a única forma de organização possível em sociedade. "Creio que a humanidade não estará condenada a viver desse modo", conclui.