Na hora de escolher um local para viver, a facilidade de acesso ao trabalho, à saúde ou à educação pesa mais do que o medo das alterações climáticas ou mesmo da pandemia. Corrida aos grandes centros urbanos do litoral intensificou-se na última década, aumentando pressão sobre a habitação e mobilidade nas maiores cidades.
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As alterações climáticas, que incluem, entre outras coisas, a subida do nível médio do mar. E os dados preliminares do Roteiro Nacional para a Adaptação 2100, que a Agência Portuguesa do Ambiente estima concluir em 2023, indicam que, até ao final do século, 60 mil pessoas serão afetadas diretamente pela erosão costeira. Isto, se a densidade populacional não aumentar.
A pandemia de covid-19 levou, por outro lado, muitas pessoas a sentirem necessidade de se afastarem de grandes aglomerações. Mas na hora de decidir onde morar, tudo isto parece pesar menos na balança do que o emprego e a qualidade de serviços, como a saúde (de extrema importância para uma população cada vez mais envelhecida) ou a educação (primordial para os jovens que procuram aumentar as habilitações) a destacarem-se.
Se dúvidas houvesse que Portugal segue a há muito consolidada tendência mundial de concentração das pessoas em zonas urbanas (a ONU estima que, em 2050, dois terços da população mundial vai viver nas cidades), os Censos deste ano esclareceram-nas. De acordo com a análise preliminar do Instituto Nacional de Estatística, metade vive em 31 dos 308 municípios e a migração para as zonas urbanas do litoral não pára.
Os portugueses até poderiam pensar em ir mais para o interior, mas as pessoas não mudam se não tiverem emprego, saúde, ou transportes
Stella Bettencourt da Câmara, docente e investigadora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa (UL), diz que muitos portugueses ainda não têm total "consciência" das implicações das alterações climáticas e poucos foram os que trocaram de forma definitiva a vida na cidade pelo campo devido à pandemia. Em causa estará, sobretudo, a concentração de serviços nas zonas mais urbanas.
"Os portugueses até poderiam pensar em ir mais para o interior, mas seria necessário repensar a distribuição de serviços. As pessoas não se mudam se não tiverem emprego, saúde, transportes, educação", sublinha.
Os Censos mostram "uma consolidação de uma tendência que já existe há muito tempo, em Portugal e no resto do Mundo", destaca Fernanda Cravidão, geógrafa e professora catedrática da Universidade de Coimbra. "Num país pequeno, com uma costa extensa e em que a diferença se vai acentuando face ao mundo rural, a população migra quase sempre por razões de natureza económica para o litoral". Porque é aí que, observa, "estão os maiores centros urbanos, a maior parte da indústria, serviços, setor terciário, inovação, população qualificada".
Mas morar mesmo no centro da cidades também não parece fácil. "Ao aplicar uma lupa mais fina nos resultados dos Censos, percebemos que Lisboa (-1,4%) e Porto (-2,4%) não cresceram, mas sim os municípios à volta", sobretudo junto à capital e no Algarve, realça Stella Bettencourt da Câmara.
Em boa parte, "porque as cidades se tornaram mais caras em termos de habitação", acrescenta a docente da UL, explicando que, ao irem para municípios limítrofes, criam dinâmicas como a dos movimentos pendulares de entrada e saída das grandes cidades.
Censos deixam sinal de alerta
Os Censos trouxeram um "grande sinal de alerta sobre o que estamos a fazer às nossas cidades", frisa Alda Botelho Azevedo, investigadora no Instituto de Ciências Sociais e professora no ISCSP da UL.
Há um movimento do interior para o litoral e isso "sobrecarrega a responsabilidade das autarquias dos grandes centros urbanos relativamente àquilo que são as condições de vida e habitacionais de quem ali reside". Em 2011 havia 1,5 casas por agregado. Agora temos 1,4 e "ainda há famílias que não têm cumpridas as funções basilares da habitação".
Alda Botelho Azevedo analisa o caso da capital. O município de Lisboa perde 1,4% da população residente, mas , se olharmos para as freguesias do Centro Histórico, "apercebemo-nos dos efeitos da última década e há situações gritantes".
Estamos a falar de um verdadeiro "tsunami" que varreu o Centro Histórico de Lisboa
"A freguesia da Misericórdia perdeu 26% da sua população residente e 18% dos alojamentos familiares. A de Santa Maria Maior perdeu 22% da população e 29% dos alojamentos. Estamos a falar de um verdadeiro "tsunami" que varreu o Centro Histórico". Isso é "muito preocupante e torna muito urgentes medidas que possam desacelerar e inverter estas tendências de centros históricos-fantasma".
A "escalada" de preços na habitação, quer no arrendamento quer na compra, refere Alda Botelho Azevedo, é "muito desfasada do crescimento do rendimento médio das famílias", pelo que é necessário "derrubar as barreiras no acesso à cidade que foram criadas através da escalada de preços da habitação".
No Norte, o município de Braga contrariou as tendências e cresceu 6,5%, a maior subida em termos absolutos. O "segredo da atratividade", explica o presidente da Câmara, Ricardo Rio, reside em quatro eixos: a universidade (20 mil alunos e uma elevada capacidade de fixação do talento), dinâmica económica (emprego), a segurança (muito valorizada pelos imigrantes) e a qualidade de vida (saúde, educação, desporto, cultura).
Braga em contraciclo
O grosso fixou-se "na malha urbana", diz Ricardo Rio, salientando que a freguesia onde está a universidade cresceu 27%. "Temos conseguido não desertificar o centro da cidade, fazendo conviver o crescimento do turismo com os serviços, o comércio e a habitação para residentes", destaca.
Para dar resposta ao crescimento, houve um incremento da reconstrução e nova construção. Braga tinha, há anos, "um parque imobiliário devoluto significativo, com 10 a 12 mil apartamentos que estavam sem uso" e foram agora aproveitados. Apesar disso, os preços continuam "competitivos e mais baixos do que na maior parte das cidades de média e grande dimensão".
Nos últimos anos também houve um "aumento do trânsito", reconhece o autarca. As prioridades serão, por isso, a criação de acessibilidades para reduzir trânsito de atravessamento (nó de Infias e a extensão da variante do Cávado) e a qualificação dos transportes públicos (até outubro, 30% da frota de autocarros será movida a energia elétrica ou gás comprimido)