Vítima não foi protegida pelo Ministério Público, nem pela GNR e tão pouco pelos médicos que a assistiram. Peritos da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Violência Doméstica criticam atuação de todas as entidades envolvidas no caso
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O Ministério Público (MP) nunca sentiu necessidade de impor medidas de coação duras a um suspeito de violência doméstica e a GNR entendeu, em quatro avaliações, não existir risco elevado de a vítima voltar a ser agredida. Também os médicos não efetuaram diligências para proteger uma mulher, de 38 anos, violentamente agredida quando estava na cama, abraçada ao filho de 9 anos.
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Perante esta inoperância, José Fernandes, 51 anos, teve total liberdade para, no dia seguinte ao fim do julgamento por violência doméstica, matar a tiro a ex-companheira Paula Alves e suicidar-se ao volante de um carro que conduziu para uma ribanceira, em Oliveira de Frades, com o filho de ambos sentado no lugar do pendura.
Apesar de não ter sido defendido pelo MP e pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), o menino foi o único sobrevivente num processo que falhou em tudo. "Todos agiram de forma isolada, em reação a acontecimentos que foram chegando ao seu conhecimento, sem que tivesse havido transmissão de informação, diálogo e articulação, impossibilitando-os de ter uma visão holística e, portanto, um efetivo conhecimento dos problemas que importava resolver e de definirem uma estratégia informada, coerente e eficaz de intervenção", realça a Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Violência Doméstica (EARHVD).
Queria incendiar carro com mulher no interior
No seu último relatório, publicado na semana passada, o grupo de trabalho criado pelo Governo e liderado pelo procurador jubilado Rui do Carmo, não poupa nas críticas a todas as entidades envolvidas num caso que remonta a 3 de março de 2020. Nesse dia, José Fernandes dirigiu-se ao carro no qual a antiga companheira esperava que o filho lhe fosse entregue pelo pai. Sem aviso prévio, baleou-a duas vezes, regou o automóvel com gasolina, mas não teve tempo de acender o fósforo. "Tudo indica que não inflamou o combustível por ter aparecido o filho", refere a acusação do MP.
Depois, o técnico de manutenção sentou a criança no Fiat Punto, arrancou a grande velocidade do local do crime e, com poucos quilómetros percorridos, avisou que ia causar um acidente para que ambos morressem. A queda pela ravina foi violenta e provocou a morte do condutor assassino. O menino, porém, sobreviveu com ferimentos ligeiros e um grande trauma psicológico.
A mais baixa das medidas de coação
O homicídio ocorreu no dia imediatamente seguinte ao julgamento em que José Fernandes respondeu pelo crime de violência doméstica sobre Paula Alves. No final da sessão, Fernandes foi informado que a sentença seria lida 14 dias depois e saiu sem qualquer restrição do tribunal.
Estava apenas sujeito a termo de identidade e residência (TIR), a mais baixa das medidas de coação e a única que lhe foi aplicada desde que, em dezembro de 2019, agrediu a mulher com quem manteve um relacionamento durante 19 anos. O ataque envolveu agressões e cabelos arrancados com a vítima deitada na cama, abraçada ao filho, e levou, pela primeira vez, a mulher a denunciar a violência doméstica que havia sofrido nos oito anos anteriores.
Nos meses seguintes à denúncia, Paula Alves contou às autoridades que sentia "pânico e medo" porque o antigo companheiro continuava a telefonar-lhe constantemente, perguntava informações aos seus colegas de trabalho e perseguia-a por diversos locais. Confessou recear pela sua vida e pediu que José Fernandes ficasse impedido de a contactar.
O MP determinou que a GNR procedesse ao "patrulhamento policial constante e possível da residência ou dos locais onde a ofendida poderia ser encontrada". Também ordenou a troca de números de telefone entre Paula Alves e a Guarda, para "permitir uma intervenção rápida em momento de agressão" e aceitou que a vítima usasse um aparelho de teleassistência.
Contudo, manteve o TIR como única medida de coação aplicada ao agressor. Uma decisão sustentada em três fichas de avaliação de risco que nunca consideraram elevada a probabilidade de Paula ser atacada uma vez mais. Nem quando o juiz requereu nova avaliação de risco pouco antes do julgamento a análise foi alterada.
"Na avaliação do risco não foi tomada em consideração toda a informação existente em cada momento, mesmo aquela que já constava das avaliações de risco anteriores, os fatores assinalados foram-se alterando de acordo com as oscilações na estabilidade e na perceção do risco pela vítima, única fonte de informação. Ou seja, foi cumprido um procedimento burocrático, mas não efetuada uma avaliação de risco com o comprometimento na procura ativa de informação com origem em diversas fontes", alega a EARHVD.
Para a equipa constituída por entidades de diferentes áreas, também os médicos do centro de saúde e hospital onde a família foi assistida ao longo dos anos, inclusive a lesões causadas por violência doméstica, falharam ao não efetuar "qualquer comunicação à Equipa para a Prevenção da Violência em Adultos, resposta estruturada e formalizada nos serviços de saúde". "A equipa de saúde familiar dos cuidados de saúde primários nunca efetuou qualquer diligência tendo em vista proporcionar apoio e proteção a A [Paula Alves] ou qualquer comunicação a entidades que devessem desenvolver a resposta à situação em que esta se encontrava", frisa
Criança desprotegida
Segundo a EARHVD, também a situação do menino em perigo só foi comunicada ao Núcleo Hospitalar de Apoio a Crianças e Jovens em Risco apenas quando aquele "foi vítima da tentativa de homicídio, não tendo até então sido sinalizada a qualquer entidade de 1.ª linha ou CPCJ". "E nunca foi efetuada uma avaliação global e das relações existentes nesta família, que teria permitido delinear uma intervenção que procurasse evitar o agravamento da situação", acrescentam os especialistas.
"Até à data do homicídio da mãe e da tentativa de homicídio de que esta criança foi vítima, a ação desenvolvida pela CPCJ fora insuficiente e inadequada para alcançar o objetivo de promover os seus direitos e pôr termo à situação que estava a afetar a sua saúde, segurança, educação e desenvolvimento", lê-se, igualmente, no relatório.