Governo quer acabar com travão ao despejo de famílias que não têm para onde ir
Moratória foi instituída em março de 2020 devido à pandemia de covid-19. Decisão vai ser do Parlamento. Senhorios defendem que medida chega tarde, inquilinos cedo.
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O Governo propôs à Assembleia da República a revogação do travão legal que, desde 20 de março de 2020, tem permitido a famílias com ordem de despejo permanecer excecionalmente na habitação onde moram. Na prática, os processos têm continuado a ser tramitados na Justiça até existir uma decisão, mas, ao ser ordenada a saída da casa, tem bastado aos inquilinos, para suspender a desocupação, invocar que se esta avançar ficam em "situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa".
Só no Balcão Nacional de Arrendamento - onde são tramitadas ações urgentes relacionadas, nomeadamente, com a falta de pagamento de rendas - foram emitidos, até 6 de outubro deste ano e segundo números fornecidos ao JN pelo Ministério da Justiça, 1336 títulos de desocupações de habitações, 523 (39%) dos quais nos últimos seis meses contabilizados. Os dados não permitem saber quantos inquilinos têm beneficiado da suspensão da entrega da casa em si, instituída para mitigar as consequências da pandemia de covid-19.
António Machado, dirigente da Associação dos Inquilinos Lisbonenses, admite que, "em centenas de milhares de contratos de arrendamento", a eventual revogação da medida pelo Parlamento não terá "grande expressão". O responsável lembra, ainda assim, que em causa estão pessoas e que, atendendo à inflação e perda de rendimentos atuais, a situação "não está tão desagravada assim".
"Talvez fosse de esperar mais meia dúzia de meses. Há aqui uma pressa de utilizar a maioria absoluta [do PS]. Não era preciso andar a precipitar os acontecimentos", defende, ao JN, António Machado.
Proteção indiscriminada
A vice-presidente da Associação dos Proprietários e Agricultores do Norte de Portugal reconhece que a habitação é sempre "um ponto delicado". Patrícia Maio ressalva, contudo, que desde o início não foi feita qualquer distinção entre situações geradas pela pandemia e outras anteriores.
"A realidade é que muitos foram os inquilinos que beneficiaram desta lei não porque viram os seus rendimentos diminuídos no âmbito da pandemia de covid-19, mas porque já estavam em incumprimento do contrato de arrendamento pré-pandemia", corrobora a sua homóloga da Associação Lisbonense de Proprietários, Iolanda Gávea.
Além disso, salienta Patrícia Maio, há senhorios também em dificuldades. "Houve pessoas que emigraram e regressaram e agora não têm casa para viver", exemplifica.
O eventual fim da moratória não implica a cessação de outros apoios previstos noutros diplomas, nomeadamente no Novo Regime de Arrendamento Urbano, a inquilinos com rendimentos baixos.
Entre pacote de leis
Certo é que, apesar de há muito pedida por proprietários, a proposta de revogação apanhou de surpresa senhorios e inquilinos. Em causa está, de resto, somente um número da Lei 1-A/2020, cujo fim de vigência é proposto a par de dezenas de outras leis, num único diploma remetido ao Parlamento, no passado dia 11 de novembro.
A proposta, confirmada ao JN pela tutela, é fundamentada com o "desenvolvimento da situação epidemiológica num sentido positivo" e com o facto de as leis visadas terem tido como objetivo "vigorar durante um período justificado de tempo".
O diploma ainda não tem data para ser debatido nem para entrar em vigor.
Cerca de 150 comerciantes despejados em seis meses
Desde que, em fevereiro de 2021, a tramitação dos processos de despejo, voltou a ser regra no Balcão Nacional de Arrendamento, deixando de fora apenas a entrega de habitação, foram despejados 319 comerciantes. Destes, 149 (46,7%) foram obrigados a entregar o espaço arrendado entre 19 de abril e 6 de outubro deste ano, segundo o Ministério da Justiça. Entre 20 de março de 2020 e fevereiro de 2021, os comerciantes estiveram igualmente protegidos das ações urgentes. Se a proposta do Governo for aprovada nos termos atuais, acabará também a suspensão do prazo de 30 dias para as empresas se declararem insolventes, nos termos do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas. "Determina-se que os prazos para apresentação à insolvência apenas iniciam a respetiva contagem com a entrada em vigor da presente lei", lê-se na proposta.
Evolução
Tramitação parada
Entre 9 de março de 2020 e 1 de fevereiro de 2021, a tramitação no Balcão Nacional de Arrendamento das ações urgentes de despejo esteve parada. Mas uma alteração à lei que impusera a moratória implicou que, a partir daí, só a entrega da casa passasse a estar suspensa.
Ordens dispararam
A alteração legal traduziu-se, até 9 de março de 2021, numa só ordem de despejo. Desde então e até 18 de abril deste ano, foram 983 (habitação e comércio). Até 6 de outubro, foram mais 672. Lisboa, Setúbal e Porto são os distritos mais afetados.