Redes de vigilância e acesso a base de dados, maior circulação de pessoas, mais contactos, perda de cobertura vacinal e de imunidade entre as hipóteses admitidas por especialistas.
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Mais de dois anos de SARS-CoV-2. Alpha, delta, ómicron. Desconfinámos. E passámos a falar, ouvir, questionar. Hepatite de origem desconhecida. Varíola dos macacos. Poliomielite. Afinal, o que se passa com os vírus? O espaço temporal partilhado com a pandemia é coincidência? O JN ouviu dois especialistas. Na certeza de que não há certezas absolutas.
Jorge Machado, coordenador do Departamento de Doenças Infecciosas do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), e Miguel Prudêncio, investigador principal do Instituto de Medicina Molecular (iMM) João Lobo Antunes, concordam que, com a crise sanitária decretada pela covid, afinaram-se sistemas de vigilância e alargou-se o acesso a bases de dados. Que sempre existiram, diz Jorge Machado, mas que estavam "limitados a alguns centros de excelência". O que veio, assim, "acelerar processos de maior rigor no diagnóstico, a rapidez na troca de informação e um maior cuidado e atenção a novos agentes e doenças". Já Miguel Prudêncio, que sublinha ser "especulativo atribuir uma reação causa-efeito com a pandemia", nota, também, que "há um conjunto de monitorizações que sempre foram feitas mas que, porventura, depois da covid, tornaram-se mais eficazes do que já eram". Num "escrutínio que sempre existiu, mas que se tornou ainda mais dotado de meios".
Imunidade fragilizada
É uma questão há muito discutida, não é consensual, mas surge como explicação lógica nalgumas doenças: até que ponto a proteção a que estivemos sujeitos nestes dois últimos anos comprometeu o nosso sistema imunitário? "Poderá apenas explicar um eventual recrudescimento de doenças que já existiam anteriormente (já eram endémicas) em determinada região, mas em que o seu número tenha sofrido um grande aumento e provocado um surto numa época em que tal não seria expectável", adianta o responsável do INSA.
Como foi o caso, lembra, do aumento de casos de vírus sincicial respiratório por altura da primavera/verão, concretamente em idade pediátrica, numa alteração de sazonalidade do vírus. De resto, prossegue Miguel Prudêncio, "para os vírus que não têm como via de transmissão a via aérea e para os quais a máscara não impede a transmissão é difícil fazer essa ponte".
Maior circulação
Mas a máscara fez apenas parte da bolha em que vivemos. "De distanciamento, de comportamentos, de contactos", explica o investigador do iMM. E num mundo cada vez mais populoso e globalizado, "a circulação cada vez maior de pessoas", frisa o responsável do INSA, "possibilita não apenas um potenciar do número de possíveis contactos e transmissões, mas também uma mais rápida circulação destes micro-organismos à escala mundial".
O que, em seu entender, "explica a crescente facilidade com que uma doença iniciada num dado país, numa determinada parte do Mundo, chegue rapidamente a outros países noutras regiões do planeta". Sendo disso exemplo os recentes casos de covid, varíola dos macacos e vírus pólio.
Menor cobertura vacinal
Falando em poliomielite - vestígios do vírus foram encontrados nos esgotos de Londres, doença que havia sido declarada erradicada em 2003 -, Miguel Prudêncio não tem dúvidas ao avançar como explicação a quebra de cobertura vacinal contra a pólio. "Não é especulativo. As vacinas são fundamentais para proteger de doenças infecciosas para as quais foram desenhadas", sublinha o cientista.
Sendo que, ao reduzir-se o número de pessoas vacinadas, abrem-se "janelas para a entrada na comunidade", avisa o investigador. Foi o que aconteceu em 2019, com surtos de sarampo em países como o Reino Unido ou a Grécia, recorda.
Por último, Miguel Prudêncio admite que, tendo a pandemia posto a Saúde Pública na ordem do dia, estamos - Comunicação Social, autoridades de saúde, população - "mais atentos", podendo explicar, "em parte, que se saiba agora de casos deste tipo que se calhar já aconteceriam antigamente".
Hepatite aguda
De etiologia desconhecida (não tem origem nos vírus A, B, C, D e E), afeta crianças e em 10% dos cerca de 900 casos em todo o Mundo foi necessário transplante hepático. Portugal conta 17 casos prováveis, nenhum grave.
Varíola dos macacos
Há 473 casos confirmados do surto que começou em Lisboa e Vale do Tejo, um deles numa mulher. A maioria são homens com menos de 40 anos. Na Europa, os primeiros casos foram no Reino Unido.
Poliomielite
Vestígios do vírus da pólio foram encontrados nos esgotos de Londres. OMS apelou ao reforço da vigilância nos países com elevada mobilidade com áreas afetadas pela pólio.