Legislação recente da saúde mental prevê um maior respeito pelos direitos do doente. Ex-bastonário dos advogados admite haver risco de inconstitucionalidade.
Corpo do artigo
Só nos primeiros seis meses do ano passado houve 2846 processos de internamentos compulsivos a correr nos tribunais judiciais de primeira instância, tendo sido internadas contra a sua vontade 1523 pessoas. Todos os anos passam pelos tribunais milhares de processos, um número que subiu em 2021 comparativamente a 2019. A nova lei de saúde mental "acentua uma visão humanista" e, por isso, prevê reduzir os internamentos para que sejam mais respeitados os direitos do doente. Psiquiatras concordam com as mudanças, mas o bastonário cessante da Ordem dos Advogados considera-as "inconstitucionais".
Passados 20 anos da vigência da atual lei da saúde mental, a ciência, a investigação e os fármacos evoluíram, abrindo portas a novas terapêuticas e ao tratamento de doentes em casa. Mas o número de internamentos nos hospitais continua elevado e subiu em 2021. Fernando Vieira, psiquiatra forense no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, diz que este aumento poderá prender-se com "a pressão no serviço de urgência, a escassez de recursos humanos e a procura de tratamento por mais pessoas".
Outra das "hipóteses" pode estar relacionada com "os familiares e médicos estarem mais atentos à importância de tratamento precoce para impedir o agravamento da patologia e todos estarem mais conscientes dos seus direitos".
O psiquiatra Fernando Vieira reconhece que "um internamento embora necessário, muitas vezes, não é a melhor solução a longo prazo". Mas "cá fora é necessário apoio familiar e social, integração comunitária, entre outros", ressalva.
A nova lei da saúde mental, aprovada pelo Governo e que será agora debatida no Parlamento, prevê "a prestação de cuidados de saúde mental no ambiente menos restritivo possível, devendo o internamento hospitalar ter lugar como medida de último recurso". Com a reforma legislativa, internar vai tornar-se mais difícil.
Consentimento
Os especialistas vão passar a ter de verificar "uma série de pressupostos", que antes não existiam, como "a vontade do doente". "Agora pode haver pessoas mais conscientes dos seus direitos que não querem ficar internadas e não ficam, uma vez que estejam capazes de consentimento", refere Fernando Vieira.
Além disso, para que o tratamento involuntário tenha lugar em ambulatório, esse apoio deverá "ser assegurado pelas equipas comunitárias de saúde mental". Maria João Heitor, presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria, lembra que estas têm vindo a crescer, "mas ainda são insuficientes".
Inconstitucional
O ex-bastonário da Ordem dos Advogados Luís Menezes Leitão tem muitas reservas quanto às mudanças. "Não me parece uma técnica legislativa adequada integrar o internamento compulsivo, devido à gravidade que implica, num regime geral de tratamento involuntário do doente mental, como agora a lei faz".
Quanto à reforma que prevê que o doente possa "decidir, livre e esclarecidamente, na medida da sua capacidade, sobre os cuidados de saúde que lhe são propostos", o ex-bastonário diz que "esta norma abre claramente a porta a que se questione a capacidade do doente para recusar os tratamentos".
Luís Menezes Leitão defende que estas alterações podem ser mesmo inconstitucionais, uma vez que a Constituição "só admite a restrição ao direito à liberdade em caso de internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial".
40 novas equipas
O Ministério da Saúde diz que serão "criadas 40 novas equipas comunitárias e mais respostas residenciais na comunidade, tendo em vista a desinstitucionalização dos cuidados, 15 Centros de Responsabilidade Integrada e requalificadas as instalações de 20 entidades dos Serviços Locais de Saúde Mental".
"Nos cuidados hospitalares, serão construídas quatro unidades de internamento em hospitais gerais, tendo em vista a supressão do internamento de doentes agudos em hospitais psiquiátricos. Nos cuidados continuados serão criados até 1500 lugares dedicados à saúde mental", avança.
O que muda
Inimputáveis
As medidas de internamento deixam de ter uma duração ilimitada ou perpétua. O internamento não pode exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo do crime cometido pelo inimputável.
Internamentos compulsivos
A prestação de cuidados de saúde mental deve ser feita no meio menos restritivo possível. Sempre que os doentes possam ser tratados em casa, não deve ser privada a sua liberdade.
Medidas coercivas
As medidas coercivas, como meios de contenção física ou químicos como medicação injetável, só podem ser utilizadas involuntariamente como último recurso e por um período limitado à sua estrita necessidade.
Avaliação em casa
A avaliação clínico-psiquiátrica passa a poder ser realizada no domicílio do doente. Até agora só podia ser feita no hospital.
Direitos do doente
Doente mental passa a ter mais capacidade de decidir. Só fica interdito dos seus direitos após avaliação psiquiátrica, se o tribunal o decretar.
Internamento ambulatório
Passa a haver internamento ambulatório involuntário sem ser necessário passar pelo internamento hospitalar.
Notas
88 milhões de euros
A reforma da saúde mental, que se pretende concluir até 2026, prevê um investimento de 88 milhões de euros, provenientes do Plano de Recuperação e Resiliência.
Reabilitação sem vagas
Há falta de vagas nas residências de apoio para a reabilitação de doentes mentais graves. As únicas respostas são nas casas de saúde dos institutos religiosos e misericórdias