As comunidades terapêuticas que tratam toxicodependentes em regime de internamento atravessam uma profunda crise financeira e estão a preparar um processo judicial contra o Estado português pelo incumprimento da lei de financiamento, cuja verba já não é atualizada há 14 anos. Desde a última atualização, cerca de duas dezenas de comunidades fecharam e perderam-se, pelo menos, 490 camas, o que atirou centenas de doentes para a rua.
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São as únicas instituições que fazem este trabalho em Portugal, mas vivem de créditos bancários e acumulam dívidas a fornecedores. As comunidades terapêuticas já estavam em crise, mas a pandemia de covid-19 e a inflação vieram agravar um problema de subfinanciamento crónico que levou ao fecho de, pelo menos, 22 espaços com 490 camas disponíveis, contabilizou o JN.
Avançar para Tribunal
Sempre que uma comunidade terapêutica fecha, os funcionários vão para o desemprego e os utentes "ficam sem resposta", lamenta Carla Silva, da Comissão Diretiva da Plataforma das Organizações Intervenientes nos Comportamentos Aditivos e Dependências (Pocad). Esta plataforma foi criada para identificar problemas, concertar medidas e procurar soluções para a crise das comunidades terapêuticas e pondera, agora, avançar para a via judicial contra o Estado.
"Já estamos na fase de ir pela via judicial. Estamos, neste momento, com um advogado", revela Carla Silva. A base do processo judicial é o incumprimento do despacho de 2008 que regularizou o financiamento das comunidades. Naquele ano, o valor por utente, entregue pelo Estado às instituições, foi fixado em 720 euros e teria de ser atualizado "anualmente com base na taxa de inflação", lê-se no despacho, mas até hoje nunca foi. Agora, as comunidades querem a atualização retroativa e estão fartas de reuniões irrelevantes.
Governo sabe e "nada é feito"
"Já tivemos várias reuniões, mas não temos qualquer indicação. O Governo tem conhecimento da situação, nomeadamente o secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales, que está muito por dentro do assunto. Mas nada é feito", lamenta Carla Silva, que gere três comunidades terapêuticas exclusivamente dedicadas a menores. O Ministério da Saúde não respondeu às questões do JN.
A crise das comunidades terapêuticas agravou-se com a pandemia, pois tiveram de comprar máscaras, gel e testes, além de terem de adaptar os espaços sem qualquer financiamento adicional. Aumentou a despesa e diminuiu a receita, já que o número de utentes também foi menor (ler texto ao lado). "Aquelas que ainda conseguem, estão a trabalhar com empréstimos bancários. Esperam-se mais encerramentos", antevê Carla Silva.
Renata Alves, diretora-geral da Comunidade Vida e Paz, fala de um "desafio brutal", pois "os custos que a instituição tem de assumir são muito grandes". A Vida e Paz tem duas comunidades terapêuticas, em Fátima e Mafra, onde trata 135 toxicodependentes, todos homens adultos em situação de vulnerabilidade ou sem-abrigo. Sempre que uma comunidade terapêutica fecha, "todo o investimento que foi feito nas pessoas perde-se", afirma. Há casos em que o tratamento dura 18 meses. Renata Alves constata que há um "aumento de consumos" e um "aumento de pessoas em situação de sem-abrigo", sendo que "muitos resultam da falta de respostas".
Atualização na lei
O despacho de 2008 diz que "os preços máximos praticáveis são estabelecidos, anualmente, com base na taxa de inflação, por despacho conjunto das Finanças e da Saúde".
Saúde tem tutela financeira
A tutela técnica das comunidades terapêuticas é do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, mas a tutela financeira é do Ministério da Saúde.
Perto do salário mínimo
Em 2008, quando o despacho foi publicado, o salário mínimo era de 426 euros e a verba por utente estava em 720 euros, 69% acima. Agora, os mesmos 720 euros por utente estão apenas 2% acima do salário mínimo nacional de 705 euros.