Joaquim Ferreira morreu. Carlos Silva também. José Silva está, desde o final de outubro, no hospital. Não consegue pegar num telefone. Luís Mendanha ainda se cansa a subir as escadas. São quatro das 89 vítimas do surto de legionela que afetou os concelhos de Matosinhos, Vila do Conde e Póvoa de Varzim.
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Foi o mais mortal de sempre da bactéria registado em Portugal, mas, mais de dois meses depois, continuam a faltar respostas. Vítimas, famílias e câmaras desesperam. Ganha força a tese, noticiada pelo JN, de que a demora na ação da saúde pública pode ter apagado o rasto da legionela. A fonte permanece desconhecida. O PCP exige, agora, explicações "urgentes".
Da manhã "cheio de energia", à noite com febre, dois dias depois em coma. Rins a falhar, coração fraco, pulmões a fraquejar, quase nenhuma esperança. Diagnóstico? Legionela. "Como? Porquê?". Ninguém lhe diz. José Silva, de 73 anos, conseguiu fintar a morte, mas as sequelas são muitas.
"Está sem andar, quase sem se mexer, ainda lhe custa comer. Nem no telefone consegue pegar sozinho", conta a filha, Renata Martins. Helena Moura, a mulher, não consegue falar de José sem chorar. A pandemia limita as visitas. Doem as incertezas.
Resignação
"Já sabemos que vai ficar com muitas sequelas", continua Renata. O apartamento dos pais, num 2.º andar sem elevador, já está à venda. "Temos que arranjar um rés do chão", explica, resignada. Ainda assim, diz, José "teve sorte". O pai de Raquel, Joaquim Ferreira, de 85 anos, morreu, depois de sete dias nos Cuidados Intensivos. O padrasto de Hermínia Albuquerque, Carlos Silva, de 82 anos, foi-se "da noite para o dia".
Até hoje, Renata e as outras famílias receberam "um único telefonema" da delegação de saúde. Queriam saber se tinha ar condicionado, água "da companhia", se o pai passeava junto a fontes, o que tinha feito nos últimos dias.
Entre as vítimas, o mesmo padrão: ou moram perto ou passaram na zona Norte do concelho de Matosinhos. José tinha ido de metro fazer teste à covid-19 no Hospital de S. João a 24 de outubro. Joaquim, a uma consulta ao Pedro Hispano dia 23. Carlos morava em Fajozes. Luís Mendanha, em Labruge.
A 19 de dezembro, o JN noticiava: as torres de refrigeração de várias empresas foram limpas antes da chegada das autoridades de saúde. Foram 12 dias entre o primeiro caso e o início das inspeções. A Administração Regional de Saúde do Norte (ARS/Norte) disse que decorreu o tempo necessário e mais não esclareceu.
Em Matosinhos, a Câmara perguntou. Até hoje, nada. Póvoa e Vila do Conde pediram uma reunião ao delegado de saúde. Ainda aguardam marcação.
A 22 de dezembro, o Centro Europeu de Controlo e Prevenção de Doenças afirmava não haver correspondência entre as análises feitas aos pacientes e as amostras colhidas nas torres de refrigeração da Longa Vida, as únicas inspecionadas onde foi detetada a bactéria.
O PCP quer saber mais. A 12 de novembro perguntou. A resposta não veio. Agora, quer ouvir, "com urgência", na Comissão de Saúde, o presidente da ARS/Norte e as delegação de saúde de Matosinhos e Póvoa/Vila do Conde. A votação do requerimento é hoje.
"Está visto que encobriram tudo"
Aos 48 anos, Luís Mendanha ficou "marcado para a vida". Jogava futebol, praticava defesa pessoal, caminhava e fazia pesca desportiva. Agora, cansa-se a subir dois lanços de escadas. Dois meses depois, continua a usar bomba. Esteve a morrer. Escapou. Ficaram as mazelas. Queria avançar para tribunal, mas já tem poucas esperanças: "Deixaram apagar os vestígios. Está visto que encobriram tudo", frisa. Será que uma torre de pequena dimensão como a da Longa Vida provoca uma nuvem de contágio com a força da registada? Porque é que este surto tem uma mortalidade tão elevada, comparado com o de Vila Franca, onde, em mais de 400 casos, morreram 12 pessoas? Que empresas limparam as torres nesses dias? Luís também queria saber. Revolta-o pensar que "a culpa pode morrer solteira".