"Lei da burca" pode ser inconstitucional. Ordem dos Advogados e Ministério Público deram parecer negativo
O projeto de lei do Chega, aprovado no parlamento na sexta-feira, que pretende proibir a utilização de roupas para ocultar o rosto em espaços públicos - como burcas, niqabs e véu islâmico - recebeu pareceres negativos do Conselho Superior do Ministério Público e da Ordem dos Advogados. Pode estar em causa uma violação de vários direitos constitucionais, nomeadamente no que toca à liberdade de religião e de culto, à identidade pessoal e à proteção contra a discriminação.
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Os dois pareceres entregues na Assembleia da República apontam para a eventual violação dos artigos 26.º e 41.º da Lei Fundamental. O Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) e da Ordem dos Advogados (OA) sublinham, assim, que o projeto de lei pode pôr em causa a liberdade de consciência, de religião e de culto e os direitos à identidade pessoal e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.
"A forma como os cidadãos e cidadãs se apresentam no espaço público integra a sua identidade pessoal, constituindo expressão da sua autonomia individual e do seu direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Do mesmo passo, a liberdade religiosa é um direito, liberdade e garantia de natureza análoga aos direitos fundamentais clássicos, gozando, pela sua essencialidade de salvaguarda acrescida", refere o parecer do CSMP, acrescentando que a proposta carece de "qualquer dado factual ou fundamento lógico" que justifique esta restrição de direitos fundamentais.
O CSMP aponta, ainda, uma possível "arbitrariedade" das coimas a aplicar. Em causa estará a indefinição do que consiste a ocultação do rosto punível por coimas entre 200 e 2000 euros em caso de negligência, e entre 400 e 4000 euros se houver intenção de violar a lei. "Sem esta concretização, o tipo definido afigura-se vago e sujeito a ampla subjetividade interpretativa, o que viola o princípio da tipicidade. Uma sanção não pode ser imposta com base em formulações genéricas ou indeterminadas, sob pena de redundar em arbitrariedade", defende o documento.
Também de acordo com um parecer emitido a 14 de julho pela OA, o projeto de lei não respeita o direito "inviolável" de consciência de religião e de culto, consagrado no artigo 41.º da constituição. Quer isto dizer que "ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa". Nesse sentido, relaciona Filipe Pimenta Trindade, vice-presidente do Conselho Geral da OA, também "ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder". Face a "fundadas dúvidas" sobre a sua constitucionalidade, a proposta mereceu uma apreciação desfavorável da OA.
As avaliações do CSMP e da OA alinham-se com as preocupações referidas na nota de admissibilidade do projeto na Assembleia da República e no relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, assinado pelo deputado do Partido Socialista Pedro Delgado Alves.
O Chega propõe que seja "proibida a utilização, em espaços públicos, de roupas destinadas a ocultar ou a obstaculizar a exibição do rosto", bem como a proibição de "forçar alguém a ocultar o rosto por motivos de género ou religião". Estão previstas algumas exceções, nomeadamente "por razões de saúde ou motivos profissionais, artísticos e de entretenimento ou publicidade". A proibição também não deverá ser aplicada em aviões, instalações diplomáticas consulares e locais de culto ou sagrados.
Na sexta-feira, PSD, IL e CDS-PP aprovaram, na generalidade, o projeto de lei do Chega. A iniciativa contou com votos contra do PS, Livre, BE e PCP, e a abstenção de PAN e JPP. Na abertura do debate, o líder do Chega especificou que o objetivo é proibir que "as mulheres andem de burca em Portugal" e dirigiu-se em particular aos imigrantes, invocando os direitos das mulheres e questões de segurança.
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Lei com "intuito persecutório, securitário e ofensivo"
A Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ) subscreve "inteiramente" os pareceres da OA e do CSMP, bem como "as conclusões de índole técnico-jurídica sobre o articulado em análise", afirmando que é "desprovido de qualquer mérito".
"Considera a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas que o projeto de lei em apreço se mostra ferido de inconstitucionalidade material, por violação do disposto nos artigos 1.º, 26.º e 41.º da Constituição da República", lê-se no parecer enviado à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e citado pela agência Lusa.
O artigo 1.º refere que "Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária", enquanto o 26.º artigo diz que "a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal" e o 41.º diz respeito à "Liberdade de consciência, de religião e de culto".
Para a APMJ, os motivos invocados para a defesa do projeto de lei têm "um intuito persecutório, securitário e ofensivo da liberdade individual, o que no seu conjunto, os qualifica como ilustrativos de um discurso de ódio, xenofóbico e atentatório da dignidade das e dos seus destinatárias/os". Defende, por isso, que esses fundamentos "só gerarão mais violência não apenas sobre as mulheres, mas igualmente sobre as meninas e raparigas".
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