Uma "aplicação maximalista" da Lei Geral da Proteção de Dados Pessoais está a exasperar os investigadores nacionais, que apontam as dificuldades crescentes em aceder a documentos preservados nos arquivos, com prejuízos evidentes para a sua ação.
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A somar à lei que protege os dados, o sociólogo e investigador João Pedro George fala ainda nas limitações de "uma diretiva europeia já por si muito estrita, aliada à lei portuguesa (igualmente estrita) e à sua aplicação (ainda mais estrita) por parte da Comissão Nacional de Proteção de Dados".
Embora o presidente da República tenha desclassificado na semana passada os últimos documentos secretos sobre a guerra colonial, "quem quiser consultar o ficheiro de um militar do Estado Novo, por exemplo, será impedido de o fazer", observa o autor da biografia de Fernando Pessoa "O Super-Camões".
Foi o que aconteceu precisamente ao historiador António Araújo quando se dirigiu ao Arquivo Histórico Militar. Apesar de ter garantido aos familiares do soldado cuja ficha pretendia consultar que iria expurgar os dados pessoais, viu a aprovação ser-lhe negada.
"O domínio da privacidade não pode ser absoluto quando está em causa o interesse público", defende o investigador.
"Falta de transparência"
A escassa abertura das instituições é um problema recorrente, queixam-se os investigadores. Ao procurar saber junto da Universidade de Lisboa qual o percurso académico de Sophia de Mello Breyner Andresen, no âmbito da biografia que estava a escrever, a jornalista e escritora Isabel Nery deparou-se com uma intrincada teia burocrática.
Foram dezenas de emails trocados ao longo de um ano que fizeram com que "parecesse que tinha de recorrer a um advogado para consultar um simples documento". No final, a pretensão esbarrou na comunicação de que teria acesso à ficha "mediante a aprovação de um termo de consentimento dos descendentes diretos da falecida aluna", o que acabou por não suceder.
"Há uma cultura de falta de transparência que favorece a cunha", acusa a autora, para quem a lógica dominante da maioria das instituições passa por reagir com reservas a qualquer pedido externo. "Pelo sim, pelo não, nega-se o acesso", diz.
Com um longo percurso no domínio da investigação, centrada sobretudo no período do Estado Novo, Irene Flunser Pimentel ainda enfrenta com regularidade resistência das instituições e não apenas das académicas. Quando biografou o cardeal Cerejeira, por exemplo, viu o Patriarcado de Lisboa fechar-lhe as portas, com o argumento de que "ainda teria passado pouco tempo sobre a sua morte", ocorrida em 1972.
Esses obstáculos estendem-se muitas vezes aos familiares que estão na posse de documentos - sobretudo no caso de antigos agentes da PIDE/DGS -, contribuindo para que o investigador tenha "um verdadeiro trabalho de detetive".
Diretor-geral da DGLAB, Silvestre Lacerda revela que, no caso da Torre do Tombo, o número de consultas permitidas "não tem diminuído", mas admite que o panorama global possa ser diferente, devido "ao desconhecimento da lei".
CNPD refuta críticas e endossa responsabilidades às instituições
Acusada pelos investigadores de ser o principal obstáculo ao desenvolvimento do seu trabalho, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) rejeita qualquer responsabilidade na matéria e fala mesmo numa "confusão" da parte de quem lança as críticas.
"A lei que regula o acesso à documentação é a mesma desde 1998", esclarece Isabel Cruz, secretária-geral da CNPD, que garante ainda que o novo Regulamento Geral da Proteção de Dados "não teve quaisquer repercussões" neste âmbito.
Para a responsável, as dificuldades crescentes na investigação devem ser assacadas às instituições. "Há uma má interpretação da legislação. Quando se invoca a Lei da Proteção de Dados para impedir o acesso é porque não existe vontade de dar a autorização", assegura.
Outra das críticas frequentes à CNPD diz respeito à obsessão pelas coimas, por daí advir a maior fonte de financiamento. Mais uma vez, Isabel Cruz discorda: "O peso é irrelevante. São 57 mil euros num orçamento de dois milhões".