Casos acompanhados pelas comissões de proteção de crianças e jovens reportam-se a abandono à nascença ou nos primeiros seis meses de vida.
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Em cinco anos, 43 bebés foram abandonados à nascença ou nos primeiros seis meses de vida pelos pais. Estes casos de abandono foram reportados e acompanhados pelas comissões de proteção de crianças e jovens entre 2017 e o ano passado. Gravidez indesejada, pobreza, falta de suporte familiar, surto psicótico e consumo de substâncias aditivas estão, frequentemente, na origem destes atos de "negligência extrema", como explica Renata Benavente, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses.
O ano com maior número de situações diagnosticadas pelas comissões nestes cinco anos foi o de 2019, com 22 situações denunciadas e 12 casos efetivamente comprovados. Houve um número crescente de abandonos acompanhados pelas comissões de proteção de crianças e jovens entre 2017 e 2018 (oito e 10 respetivamente). Após a pandemia, há menos situações reportadas.
Em 2020, no primeiro ano de pandemia de covid, o registo de abandono de bebés à nascença ou nos primeiros seis meses de vida baixou para nove e, no ano passado, foram quatro, de acordo com os relatórios anuais da atividade das comissões de proteção de crianças e jovens. No entanto, este registo não espelha a total dimensão do problema, pois há situações que são denunciadas diretamente ao Ministério Público e não passam pelas comissões.
Há fatores de risco
Questionada pelo JN, a Procuradoria-Geral da República (PGR) não consegue fornecer dados específicos de abandono de recém-nascidos. "No âmbito da jurisdição criminal, sendo os inquéritos registados por tipo de crime, o abandono de recém-nascido não configura, por si, um tipo específico, podendo enquadrar-se em vários tipos criminais, consoante as circunstâncias do caso", explica a PGR.
Ainda assim, dá conta de que "o Gabinete da Família, da Criança e do Jovem mantém contactos regulares e diretos com os magistrados do Ministério Público que, no terreno, trabalham processos respeitantes a crianças" e esse "tipo de situação não se encontra entre as que são frequentemente reportadas".
As notícias de abandono de bebés geram muita comoção social (ler cronologia), embora seja uma prática que configura uma "negligência extrema". Na generalidade das situações, "não é um comportamento ativo para causar dano à criança, ao contrário do que acontece com os maus-tratos", exemplifica a psicóloga Renata Benavente.
A investigação científica permite identificar os fatores de risco, desde acontecimentos de vida a problemas de ordem psíquica. O abandono do bebé tem origem, por vezes, numa "desorganização interna" da mãe por estar, por exemplo, numa relação abusiva ou por consumir substâncias aditivas.
A existência de problemas de saúde mental, uma crise ou um surto psicótico também podem motivar o abandono do recém-nascido, "porque a mãe não consegue entender que aquele ser necessita de cuidados".
Falta de rede social
A vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses sublinha que, em boa parte das situações, esses progenitores são "pessoas sem uma rede familiar ou suporte social". Não raras vezes, encontram-se em contextos de extrema pobreza, sem apoio social ou psicológico. "Muitas vezes, são pessoas que tiveram experiências de maus-tratos e abusos na sua própria infância. Há também mães que ocultam a gravidez e ninguém sabe que precisam de ajuda".
A especialista lembra que são sempre casos que chocam a opinião pública, sobretudo quando os bebés são deixados num ambiente desprotegido. "Cada vez mais o cuidado à criança é valorizado pela sociedade, porque temos cada vez menos crianças e são vistas como algo muito precioso. No entanto, é preciso perceber o que levou uma mãe a cometer este crime e pode haver situações de inimputabilidade, em que não é ou está capaz de cuidar da criança". Renata Benavente acredita que o apoio psicológico ou de instituições sociais pode impedir um desfecho trágico e, por isso, é importante que todos estejam atentos a sinais de risco e possam fornecer ajuda.
Alguns casos recentes
26 jul 2022
Menino recém-nascido foi deixado pela mãe num contentor do lixo na Mealhada, durante seis horas. O bebé estava envolto em sacos de plástico e foi encontrado já sem vida.
11 jul 2022
Recém-nascido foi encontrado junto a ciclovia nas traseiras de um hotel, em Cascais, pelos Bombeiros Voluntários de Estoril. Ainda tinha o cordão umbilical e aparentava boa saúde. A mãe foi detida pela PJ em agosto.
31 mar 2021
Corpo de bebé descoberto no processo de triagem de lixo doméstico na Braval, empresa que trata os resíduos dos concelhos de Braga, Póvoa de Lanhoso, Vila Verde, Amares, Terras do Bouro e Vieira do Minho. Estava em "sacos do lixo".
5 nov 2019
Mãe em situação de sem-abrigo teve parto sozinha na rua e deixou bebé num ecoponto em Santa Apolónia, Lisboa. Bebé foi encontrado com vida 15 horas após nascimento. A mulher terá ocultado a gravidez, uma vez que não pretendia ficar com o filho. Foi condenada a nove anos de prisão.