O presidente da República promete ouvir conselheiros, sobre pedido do juiz de instrução Carlos Alexandre quanto à audição de António Costa, e decidir num prazo "curto".
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O presidente da República sugeriu, esta quarta-feira, que não vai ser preciso esperar pela próxima reunião do Conselho de Estado, que só se realizará no dia 31 de janeiro, para decidir se autoriza ou não António Costa, primeiro-ministro e membro do órgão, a prestar depoimento presencial na instrução do processo de Tancos. As audições de arguidos e testemunhas, na presente fase processual do caso, arrancam já em 8 de janeiro.
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Quando saiu de Lisboa com destino ao Porto, nesta quarta-feira, Marcelo Rebelo de Sousa ainda não tinha recebido o despacho do juiz de instrução do processo, Carlos Alexandre, onde este manifesta a pretensão de obter o depoimento presencial do primeiro-ministro. Mas, já na cidade do Porto, o presidente da República afirmou que aquele tipo de pedidos é habitual e adiantou como são tratados.
"Como imaginam, em vários processos, é possível arrolar, com ou sem intervenção previa do próprio, o nome de membros do Conselho de Estado", declarou, acrescentando que, "depois de fazer circular esse pedido pelos membros do próprio conselho - não podendo [este] reunir para cada caso, que são muitos casos que aparecem - comunica ao tribunal competente se, sim ou não, está o membro do conselho autorizado a depor e qual é a forma como depõe".
O presidente da República e do Conselho de Estado observou que a auscultação dos 19 conselheiros "demora algum tempo", mas espera responder no "mais curto [espaço de tempo] possível" à solicitação do Tribunal Central de Instrução Criminal.
Prerrogativa de depor por escrito.
Está escrito no seu estatuto que os membros do Conselho de Estado "não podem" ser peritos, testemunhas ou declarantes sem autorização "sem autorização" deste órgão político de consulta do presidente da República.
Todavia, caso a decisão do Conselho de Estado seja a de não autorizar o depoimento presencial de António Costa, isso não deverá obstar a que este deponha por escrito, se o juiz vir nisso alguma utilidade. Com efeito, o Código de Processo Civil determina que os membros do Conselho de Estado e dos órgãos de soberania, entre outros, "gozam da prerrogativa de depor primeiro por escrito, se preferirem" - sem os dispensar desta forma de colaboração com a justiça.
Se se vier a optar pelo depoimento escrito, no caso de António Costa, o tribunal terá de dar a este o conhecimento prévio dos factos sobre os quais vai recair o seu depoimento. Depois, o primeiro-ministro terá dez dias para remeter ao tribunal uma "declaração, sob compromisso de honra, relatando o que sabe quanto aos factos indicados".
O tribunal e qualquer das partes dos processos podem, uma única vez, solicitar esclarecimentos adicionais, igualmente por escrito. A resposta deve ser dada, novamente, em dez dias.
Juiz quer espontaneidade
António Costa foi arrolado como testemunha pelo ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes, que requereu a abertura de instrução do processo para evitar o seu julgamento por crimes de abuso de poder e denegação de justiça. O juiz Carlos Alexandre acedeu ao pedido, mas na condição de o primeiro-ministro o satisfazer de forma presencial.
A tentativa de levar um primeiro-ministro a testemunhar em tribunal é um caso raro, que se explicará pelo interesse do juiz de instrução em evitar a mediação e a falta de espontaneidade que são próprias dos depoimentos escritos. De resto, Carlos Alexandre estará a usar a mesma estratégia em relação a vários generais das Forças Armadas - que também beneficiam da referida prerrogativa do Código de Processo Civil.
No âmbito da comissão parlamentar de inquérito ao caso de Tancos, António Costa já testemunhou por escrito a propósito do furto e da recuperação do material de guerra. Em maio deste ano, António Costa escreveu então que só em 12 de outubro de 2018, dia da demissão de Azeredo Lopes, havia tido conhecimento do célebre "memorando" da Polícia Judiciária Militar sobre a operação de recuperação do material furtado em Tancos, concretizada em 2017.
Do documento, o primeiro-ministro retivera "o objetivo preciso de recuperar o material furtado", a "preocupação em salvaguardar a identidade de um informador", mas também indícios de que "a Polícia Judiciária Militar procurou ocultar à Polícia Judiciária o conhecimento desta operação". Contudo, António Costa declarou também que, em reunião mantida com Azeredo Lopes no mesmo 12 de outubro, tinha ficado "com a convicção" de que o ministro "nunca o tinha visto [ao memorando] anteriormente".
Hierarquia do MP travou inquirições
Já este ano, a poucos meses de deduzir acusação contra 23 civis e militares e também das eleições legislativas, os magistrados do Ministério Público titulares do inquérito de Tancos manifestaram o interesse em fazer perguntas tanto a António Costa como a Marcelo Rebelo de Sousa, mas foram travados pela hierarquia.
"Devem os magistrados abster-se de ouvir Suas Exas. os Srs. Presidente da República e Primeiro-Ministro e formular as perguntas acima referidas", ordenou o diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, Albano Pinto, sustentando que "tais inquirições não revestiam relevância para as finalidades do inquérito nem tão pouco se perfilavam como imprescindíveis para o apuramento dos crimes objeto de investigação, dos seus agentes e da sua responsabilidade".
Aquele despacho não foi inserido nos autos do processo de Tancos, mas acabou por ser conhecido, através da revista "Sábado", e causou polémica. O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público defendeu que a ordem dada por Albano Pinto constituía uma violação da autonomia interna do Ministério Público, e o Conselho Superior do Ministério Público decidiu mesmo solicitar um parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República sobre os limites das intervenções hierárquica nesta magistratura. O resultado disso ainda não é conhecido.