Maria Manuel Mota, 53 anos, natural de Gaia, é presidente executiva da Fundação Instituto Gulbenkian de Medicina Molecular e um nome que os portugueses identificam pela excelência na investigação científica. Desde logo, pelo trabalho feito à volta da malária.
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Tem numerosas distinções científicas, foi condecorada pelo presidente da República, recebeu os prémios Pessoa e Dona Antónia, e foi agora escolhida para dirigir a Fundação GIMM (acrónimo em inglês para Instituto Gulbenkian de Medicina Molecular), que resulta da junção de dois laboratórios de excelência: o Instituto Gulbenkian de Ciência e o Instituto de Medicina Molecular.
Vamos começar por falar da Fundação GIMM. O Instituto Gulbenkian de Ciência e o Instituto de Medicina Molecular tinham muitas redundâncias, ou a soma de um mais um será mesmo mais do que dois neste caso?
Havia redundâncias nos serviços, na parte administrativa. Na ciência existia complementaridade. Em tamanho vai ser mais pequeno do que a soma de dois, mas em diversidade e interdisciplinaridade, ao juntarmos diferentes especialidades e formas de pensamento, vai ser muito mais do que dois. Os donos dos dois institutos, ou seja, a Fundação Gulbenkian, por um lado, e a Universidade de Lisboa, Faculdade de Medicina e Hospital Santa Maria, por outro, começaram a conversar para perceber como poderia haver complementaridade, e juntámos mais dois parceiros fundamentais: a Fundação La Caixa e a Fundação Arica, da família Soares de Santos.
Esses dois novos parceiros participam no financiamento?
Participam no financiamento, mas também com o conhecimento e as ideias que trazem. A ciência é feita de diversidade, de encontro de ideias. Em relação à estrutura e às áreas prioritárias, estamos a juntar duas instituições em que uma, o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), estava mais ligada às ciências da vida, enquanto o Instituto de Medicina Molecular (IMM) estava mais ligado à área biomédica, devido aos laços com o Hospital Santa Maria e a Faculdade de Medicina. Queremos ter diversidade, mas ir mais longe. Queremos criar algo que vai desde os aspetos mais fundamentais da biologia, como é que tudo funciona, até à aplicação em seres humanos, encontrar soluções. Não vamos estar organizados em departamentos e queremos atrair pessoas que tenham ideias muito boas.
Para que o resultado possa ser então a tal soma.
Sim, uma soma superior aos dois. Vamos ter o programa Descoberta e o programa Care, que vem da ideia de cuidar. O primeiro impulsionado pela curiosidade e pela paixão dos investigadores, o segundo impulsionado pelo espírito de missão. E estes dois programas fazem parte de uma estrutura em que não queremos que haja divisão. Queremos que eles se entrelacem, que aprendam uns com os outros. A vida é um contínuo.
Como é que a Fundação GIMM se vai financiar?
O investimento chega de formas diferentes. A base são os nossos fundadores, as fundações Gulbenkian e La Caixa, e a família Soares Santos. Por outro lado, muitos dos nossos investigadores vão estar ligados a outras instituições académicas, que vão pagar os seus salários, grande parte através da Faculdade de Medicina. Mas estamos à procura de outros parceiros, instituições académicas que têm todo o interesse em que os seus investigadores tenham um ambiente rico em termos de investigação. O objetivo é que estejam no GIMM a fazer investigação e, ao fim de uns anos, regressem à instituição-mãe. A ideia é ter relações com muitas instituições, nacionais e internacionais, e conseguir financiamento também dessa forma.
As candidaturas são individuais, mas a Fundação acaba por beneficiar desses projetos.
Sem dúvida. Para as pessoas perceberem como é que isto funciona: as candidaturas a projetos de investigação são individuais, mas a GIMM terá uma equipa de pessoas a ajudar sob o ponto de vista burocrático. As ideias são sempre do investigador e dos seus pares, mas haverá uma equipa para os ajudar a colocar as ideias no papel. Se o investigador conseguir o financiamento, cerca de 20% desse valor será usado para financiar a estrutura, que é de todos.
Outra das vias para conseguir financiamento será a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Tem sido muito crítica da forma como a investigação é gerida em Portugal e, em particular, na FCT, que é a principal instituição de financiamento de ciência do país. Mantém essa crítica?
Sem dúvida. A principal queixa da minha geração é relativa à forma como o financiamento é distribuído. Há coisas que funcionam bem: temos revisões por pares, temos avaliações e há que valorizar esse trabalho. Mas a principal razão de queixa é o facto de não sabermos com o que contamos. Em qualquer país do mundo civilizado, todos os anos existe um “call” para ciência, em que as pessoas podem candidatar os seus projetos, sempre na mesma altura do ano. Dou sempre o exemplo dos Estados Unidos, que tem três datas: 5 de fevereiro, 5 de junho e 5 de outubro. Há previsibilidade.
A propósito de previsibilidade, apesar de já ser conhecida a proposta de Orçamento do Estado para 2025, está por esclarecer que verba será canalizada para a FCT. Quem gere também não sabe com o que pode contar. O problema está mais acima, no poder político?
Esse é o problema que observo em Portugal nos últimos 20 anos. Tudo salta de um para o outro. Dizemos sempre que a culpa não é nossa, que vem de cima. Eu própria o digo, a culpa não é da minha instituição, não consigo dar melhores condições porque não tenho previsibilidade por parte da FCT. E a FCT diz que é o Governo. E o Governo diz que é por causa dos fundos estruturais. A um determinado momento temos de acertar o passo. Temos, constantemente, no discurso político, a ideia de que a ciência é um dos pilares fundamentais do progresso. No entanto, ninguém consegue pensar num programa plurianual, chegar a um acordo que permita que acertemos o passo entre o discurso e a ação, entre o que se diz e o que se faz. Mas deixem-me acrescentar que, para além da imprevisibilidade, há um outro aspeto igualmente terrível, o subfinanciamento. Nunca atingimos a meta do 3% do PIB na ciência. Isso estava prometido para 2020.
A nova Fundação GIMM vai concorrer com outras instituições, por exemplo com a Fundação Champalimaud?
Os nossos cientistas concorrem todos uns com os outros, até dentro de casa. Concorrem para os mesmos financiamentos, o pote é só um. Mas eu não vejo as coisas dessa forma, antes como uma complementaridade. Temos de nos ajudar uns aos outros a ter sucesso. Surge de repente uma nova fundação em Portugal, que junta dois grandes institutos e pensamos que os outros estão lixados, desculpem a palavra. Temos de combater esse espírito. Na área de Boston e Cambridge [nos EUA], estão Harvard, o MIT, e mais 14 institutos ou universidades, todos competem de uma forma saudável, formando um hub de inovação para descobertas incríveis, só possíveis por causa daquele ecossistema. O que está na mente de todos os nossos fundadores, públicos e privados, é contribuir para construir um ecossistema de conhecimento, de inovação.
Portugal tem condições para implementar um ecossistema desses?
Tem de ter, se quer ser um país civilizado com futuro. Vamos ter um ecossistema gigante como o de Boston? Dificilmente. Mas podemos ter um que vai crescendo ao longo do tempo, com financiamento nacional e internacional. A presença da Fundação La Caixa é aliás muito importante para o início de um ecossistema internacional. Temos de trazer mais financiamento de fora. Claro que vai depender do que somos capazes de fazer. Todos a caminhar para o mesmo. E o mesmo é produzirmos ciência. Queremos que o conhecimento esteja aqui, como noutros lados do mundo. Não queremos ser um buraco negro. Queremos que o conhecimento seja multipolar, que esteja em vários locais, até para defender a democracia e a paz no mundo.
A Maria Manuel Mota deixa de ser cientista para ser presidente executiva da Fundação?
A resposta é claramente não. O trabalho de presidente executivo não é fácil, e não foi fácil neste último ano, em que as duas instituições ainda existiam em paralelo, mas já estávamos a fazer planos. E desde 1 de outubro que já estamos todos na GIMM. Há um trabalho enorme para fazer, mas não o faço sozinho, há uma equipa, uma comissão executiva, que inclui um diretor de operações e financeiro, o Fausto Lopo de Carvalho, e um diretor científico, o Moisés Mallo, um cientista fantástico. Claro que eu tenho a responsabilidade máxima, não estou a fugir. Mas tenho a necessidade, e acho que a instituição também, de continuar a ser cientista. Mantenho um grupo de investigação, ainda que mais pequeno do que costumava ser.
A sua atividade enquanto cientista inclui ainda a tentativa de encontrar uma cura para a malária, ou esse já é um objetivo do passado?
Não, continua. Mas na verdade nunca foi encontrar uma cura para a malária. O meu laboratório nunca desenvolveu fármacos ou vacinas. Sempre foi um laboratório para produzir conhecimento, para que outros o pudessem usar. A ideia foi sempre a de descobrir como é que este parasita que está nos seres humanos há mais de 10 mil anos interage connosco. Como é que nós permitimos isso? Algo que pode ser tão debilitante e que teve impacto até nos nossos genes. Nós temos mutações que são altamente predominantes na população humana por causa da presença deste parasita.
Não está a ganhar a guerra?
É ele que está a ganhar. Mas esta é uma guerra de longo prazo. Uma guerra horrível em que todos perdem, mas em que a evolução ganha. Sem dúvida que está difícil de ganhar do nosso lado, mesmo com todo este nosso novo conhecimento. Mas sim, o meu objetivo continua o mesmo e tenho de agradecer a uma equipa resiliente, com uma enorme curiosidade.
Acha que a ciência tem utopias? Objetivos que não pode largar, mas em que tem de reconhecer que o fim não é facilmente alcançável ou alcançável de tudo.
Acho que a ciência vai descobrir tudo. Não sei é quando. As perguntas não param, mas eu acho que nós vamos sempre perceber tudo. Acho que não há necessidade nenhuma de haver algo que é desconhecido. Sim, para já é desconhecido, mas não temos de ver isso com medo, um dia vamos entender.
A academia encontra, nas empresas portuguesas, bons parceiros de desenvolvimento de ideias, de patentes, nesta área da biotecnologia, das ciências da vida?
Acho que há uma ligação cada vez maior. As instituições-mãe da Fundação GIMM eram muito baseadas na investigação fundamental, raramente tinham patentes. Mas nos últimos anos têm estado a fazer um caminho e um dos pilares da Fundação é a transferência de tecnologia. Temos um gabinete que é dirigido por uma pessoa com uma equipa fantástica, um olheiro. O meu pai explicou-me uma vez que havia pessoas que iam aos campos de futebol ver os miúdos e que identificavam os que tinham mais jeito para a bola. Eu nunca percebi muito bem isso, mas agora quando olho para esta pessoa é o que ele faz. Nós queremos pessoas curiosas, mas temos de ter alguém capaz de olhar e de dizer, “ouve lá, não achas que isto aqui, se pensássemos desta forma ou desta, poderia ser diferente?” O investigador vai continuar o seu caminho, em liberdade, mas vai permitir que esta equipa de olheiros pense numa forma de encaixar a sua ideia.
Tornando-a mais aplicável.
Nós fizemos um caminho incrível desde 2018, no IMM. Tínhamos uma ou duas patentes por ano, se tanto, e que não chegavam a lado nenhum. Mas, desde 2018 temos 200 novas patentes, quase 50 novas famílias de patentes, e, dentro dessas, 40% estão licenciadas à indústria. Em Portugal e no estrangeiro.