Progressões estagnadas por falta de avaliações. Greve de dois dias por melhores salários e condições no SNS arranca com protestos em Lisboa.
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Há médicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que passam dez anos no nível mais baixo da carreira, a ganhar o mesmo que os jovens especialistas que vão entrando nos quadros dos hospitais. As progressões em função do desempenho estão paradas na maior parte dos serviços por falta de avaliação, para desmotivação de milhares de médicos, e chegar ao topo da carreira é uma miragem.
A valorização da carreira e dos salários estão entre as principais reivindicações da Federação Nacional dos Médicos (FNAM) que decretou dois dias de greve, enquanto decorrem negociações com a tutela. O protesto, que deverá afetar o funcionamento dos hospitais e dos centros de saúde, arranca esta quarta-feira, com uma manifestação em Lisboa. O Sindicato Independente dos Médicos não se associou à greve.
A carreira dos médicos está dividida em três categorias, cada uma delas com várias posições remuneratórias: assistente, assistente graduado e assistente graduado sénior. Para subir de posição, são necessárias avaliações de desempenho, mas o sistema que dá pelo nome de SIADAP é "muito burocrático" e a maior parte dos serviços não o aplica, assegura Joana Bordalo e Sá, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM). "Há médicos com quase dez anos de trabalho, sempre na mesma posição. É profundamente desmotivador", acrescenta.
O salto na carreira também pode acontecer por concurso - abrem mais ou menos de dois em dois anos concursos para consultor, que permitem passar de assistente para assistente graduado - ao qual os médicos podem concorrer após cinco anos na primeira categoria.
Porém, nota Joana Bordalo e Sá, os concursos "demoram três a quatro anos a concretizarem-se". E chegar ao topo da carreira é só mesmo para uma "ínfima parte", menos de 5% chegam lá, garante a dirigente sindical.
Menos poder de compra
A grelha salarial é outro tema que levará os médicos à rua esta tarde. Negociada em 2012, teve uma atualização de 0,9% numa década e 2% este ano. Enquanto os recibos de vencimento pouco ou nada mudaram, o custo de vida disparou.
Um estudo recente mostrou que os médicos perderam 18% do poder de compra entre 2011 e 2022, mais do que os enfermeiros (3%) e ao contrário dos restantes trabalhadores nacionais que viram o seu poder de compra subir em média 6%. A análise de Pedro Pita Barros e Eduardo Costa concluiu que "a evolução negativa das remunerações dos profissionais de saúde contribui para a deterioração da atratividade do SNS".
A revisão das grelhas salariais faz parte das negociações, mas a FNAM garante que nada tem avançado. E na semana passada, o processo negocial conheceu mais um revés. Segundo Joana Bordalo e Sá, o Governo apresentou, pela terceira vez, uma proposta já rejeitada pelos sindicatos para retirar o limite de utentes por médico de família e para aumentar a idade a partir da qual os médicos podem pedir dispensa do trabalho na urgência. A tutela garante que nada foi discutido e Joana Bordalo e Sá até concorda. "Não foi discutido, mas o papel foi-nos entregue. Isto não é sério e está a potenciar mais descontentamento", remata.
Testemunhos
"É preciso reter clínicos e atraí-los para o SNS"
Pedro Frias tem 32 anos, acabou o curso de Medicina há sete anos, tornou-se especialista em psiquiatria há um e trabalha no Hospital Magalhães Lemos, no Porto. Vai aderir à greve e marcar presença hoje na manifestação. "A minha principal motivação, enquanto médico que está a iniciar a carreira como especialista, é a degradação do SNS. São as condições materiais, técnicas e humanas que estão afetadas", afirma. "A greve impõe-se porque o Governo não mostra vontade de resolver o problema. Para Pedro Frias, não se pode dizer que há falta de clínicos em Portugal. "Somos um dos países com maior número de médicos per capita, segundo a OCDE. É preciso é atraí-los e retê-los no SNS", aponta. Pedro Frias diz que " o que se pede aos médicos para compensar o desinvestimento na Saúde é desumano". Crítica as horas de urgência - a redução de 18 para 12 horas semanais é uma das reivindicações -, lembrando que, em certas especialidades, "o trabalho é permanente, com apenas uma hora para comer".E que as medidas tomadas para concentrar urgências, violam o princípio da acessibilidade. "Os privados há muito que perceberam que precisam de captar recursos humanos de qualidade para atingir os seus objetivos. Eles sabem que o SNS forma bem e vêm buscar os profissionais", afirma. Ainda assim, "os médicos querem o público, porque é aí que encontram evolução técnica e científica e onde podem prestar cuidados sem dilemas éticos". RUI DIAS
"Há um desvio de cirurgias e exames para o privado"
Joana Carneiro, 43 anos, é médica há 18 anos e especialista em medicina interna há dez. Trabalha no Hospital de Santa Luzia, em Viana do Castelo, e ganha 1780 euros líquidos. Acha que é mal paga, "depois de tantos anos de formação". Adere à greve em protesto "pelo contínuo desinvestimento no Serviço Nacional de Saúde". "O melhor acesso à saúde ainda é no público, mas há um desvio permanente de cirurgias e exames complementares de diagnóstico para os privados. Os médicos são cada vez mais condicionados por autorizações superiores que têm que pedir para usar determinadas terapêuticas", queixa-se. Para ganhar mais, Joana Carneiro poderia fazer horas extra. "Oportunidades não faltam, mas neste momento não o faço, tenho um filho e quero dedicar-lhe tempo". A médica sublinha que a sua classe é a única na Função Pública com horário de 40 horas e questões como o alargamento das horas obrigatórias de urgência (são 18 semanais atualmente) ou o aumento do número de utentes por médico nos cuidados de saúde primários, "degradam a qualidade da medicina". Também é de opinião de que não há falta de clínicos, "estão é mal distribuídos, muitos no litoral e poucos no interior. No caso de Lisboa, não é possível viver com os salários que temos e, qualquer dia, o Porto estará igual". Apesar do descontentamento, Joana Carneiro tem resistido aos convites para ir para o setor privado. "Não me revejo no modelo".