Sonharam ser médicos, mas nunca imaginaram passar por tal provação, logo nos primeiros dias de carreira.
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Rita Areias, Rita Oliveira e André Pinto especializaram-se em Saúde Pública, Medicina Geral e Familiar e Doenças Infeciosas, respetivamente, pouco antes da pandemia covid-19 rebentar. As habituais fases de adaptação à nova vida foram ultrapassadas pelas "urgências" dos dias. São dos mais recentes especialistas do Serviço Nacional de Saúde, estão a viver momentos avassaladores e um desafio definidor das suas vidas profissionais
Entrou de rompante no maior desafio da carreira
Corria o mês de fevereiro e Rita Areias, 35 anos, cumpria o percurso normal de tantos médicos recém-especialistas. Terminou a especialidade em Saúde Pública em outubro de 2019 e quatro meses depois estava colocada na Unidade de Saúde Pública (USP) do Agrupamento de Centros de Saúde do Alto Ave, que dá resposta aos concelhos de Guimarães, Vizela e Terras de Basto. Ainda estava a adaptar-se à equipa, a perceber a organização do trabalho, quando surgiu a pandemia e tudo mudou.
Todo o trabalho que a unidade de Saúde Pública fazia até ali - desde vistorias a estruturas até juntas médicas, entre outros - ficou para trás e os dias passaram a ser ao telefone. Horas e horas a fio a inquirir infetados com covid-19 para descobrir os seus contactos de alto risco e tentar quebrar as cadeias de transmissão. Horas e horas ao telefone a contactar os suspeitos, um a um, a determinar o isolamento profilático, a convencê-los da importância do cumprimento das medidas impostas e a fazer a vigilância ativa destes casos.
A 7 de março, surge o primeiro caso positivo no Alto Ave. "Foi num ginásio e foi muito difícil fazer a avaliação de risco num sítio fechado onde passam dezenas de pessoas", conta a médica, que, naquele momento, se apercebeu que estava perante o maior desafio da sua carreira. "Tive de começar a fazer o que nunca tinha feito e o grande desafio foi integrar uma equipa que desconhecia e, de repente, tudo ter de funcionar em equipa, todas as decisões tinham de ser tomadas em conjunto para serem o mais parecidas possível", explica Rita Areias.
Seis meses depois, a especialista foi chamada para reforçar o gabinete de crise criado na Administração Regional de Saúde do Norte para combater a pandemia.A região está na pior fase de sempre, confrontada com milhares de novos casos diários e Rita está novamente a adaptar-se a uma equipa e a uma missão diferente, com um caráter mais macro. Atualmente, está a aprender a responder às perguntas que há seis meses fazia, e a prestar apoio às unidades que estão assoberbadas de trabalho.
"Às vezes, não vemos o panorama todo, precisamos de apoio e, por isso, o trabalho em equipa é essencial", refere. Nos inquéritos epidemiológicos, por exemplo, perguntas simples como "tem máquina de café?" podem revelar-se muito importantes para determinar os contactos de risco numa empresa.
Desde março a "cobrir buracos" em centros de saúde
Em pouco mais de meio ano, a médica de família Rita Oliveira vai assumir quatro listas de utentes em Matosinhos. Desde março que anda a saltar de centro de saúde em centro de saúde, a cobrir "buracos" de colegas que saíram numa altura em que os cuidados primários estão com dificuldade em dar resposta aos doentes covid e não-covid. Aos 29 anos, não lhe falta energia para enfrentar o "tsunami" provocado pela pandemia, mas sabe que, por mais que se esforce, não conseguirá responder a tudo. "O que mais dói são as críticas de quem acha que os médicos não fazem nada", diz.
Do Centro de Saúde da Senhora da Hora, onde concluiu a especialidade de Medicina Geral e Familiar em março, Rita Oliveira foi transferida para Leça da Palmeira e depois para Perafita. Em agosto, nova mudança. Foi "reabrir" a unidade de Santa Cruz do Bispo - alojada num espaço exíguo no rés do chão de um prédio - que esteve fechada na primeira fase da pandemia por falta de condições físicas para garantir distâncias entre doentes e de recursos humanos. Em breve, quando chegar a médica que escolheu a vaga daquela unidade, regressará a Perafita, onde ficou colocada.
"Custa-me muito voltar a deixar uma lista de utentes, as pessoas sentem-se quase como abandonadas", admite a recém-especialista. Em Santa Cruz do Bispo, Rita Oliveira encontrou uma população muito carente de cuidados. Pessoas que, enquanto o centro de saúde esteve fechado, não procuraram alternativas porque não têm meios de transporte ou têm problemas de mobilidade. Muitos não sabem usar e-mail e outros não ouvem o suficiente para manter uma conversa ao telefone. "Quando abrimos, tivemos uma enchente", recorda a médica. Aos que ficaram para trás, juntaram-se ainda outros que, alertados para as questões de saúde por causa da pandemia, decidiram procurar o médico para controlar fatores de risco e fazer "check-ups".
Foi preciso estratificar os pedidos de consulta, dar prioridade aos casos mais graves, manter o acompanhamento de grávidas e crianças, continuar a responder a e-mails, telefonar aos doentes para perceber a real necessidade de consulta, e conciliar tudo isto com um turno por semana na Área Dedicada Covid da Senhora da Hora, e com telefonemas diários aos doentes infetados (trace-covid). "Tenho muita dificuldade em dar resposta a tudo, por mais que me esforce", admite Rita Oliveira.
Aprendeu a ventilar doentes a um ritmo inesperado
Foi em outubro do ano passado, ao fim de cinco anos de internato, que André Pinto começou a trabalhar como especialista no Serviço de Doenças Infeciosas do Hospital de S. João, no Porto. Três meses depois, em janeiro, iniciou uma segunda especialidade em Cuidados Intensivos. Fê-lo por necessidade do serviço, sem nunca imaginar quão necessário seria nos meses seguintes. A "bomba" explodiu em março e nada voltou a ser como antes.
Em poucos dias, o serviço encheu com doentes covid-19, "esteve a transbordar", e foi preciso crescer para os lados, para cima e para baixo, revolucionar todo o hospital para dar resposta aos infetados. "Foi avassalador", descreve o médico que, por estes dias, face ao aumento dos internamentos, está a reviver o filme de março e abril.
"Avassalador" a nível profissional e pessoal. Aos 32 anos, ainda a dar os primeiros passos em Cuidados Intensivos, André Pinto aprendeu a ventilar doentes a um ritmo inesperado. Nunca esteve sozinho, mas foi forçado a evoluir tão depressa como as novas admissões no hospital mais pressionado do país na primeira fase da pandemia.
"O serviço é grande o suficiente para nunca nos sentirmos desamparados. Houve sempre disponibilidade de quase toda a gente para me apoiar, desde diretores a chefes de serviço", realça.
Ainda assim, a palavra "avassalador" volta a sair-lhe para descrever o sentimento dos últimos meses. Ao cansaço físico de horas e horas seguidas de trabalho, o médico junta o desgaste emocional de quem sabe que, mesmo fazendo tudo bem, os resultados nem sempre são os esperados. E junta a incapacidade para acompanhar tudo o que a ciência diz e destrinçar o importante e credível, e a incerteza que se mantém sobre quais são os melhores medicamentos para tratar os doentes graves.
Preparado para lidar com a morte como qualquer outro médico, o especialista sentiu a dificuldade de ter de explicar por telefone (porque as visitas não eram permitidas) a familiares de doentes que não foi possível evitar o pior desfecho.
A "imprevisibilidade" é a grande lição que André Pinto retira desta pandemia, que viu nascer de forma súbita, no momento em que se tornou especialista. A última que tinha visto foi a gripe A, era ainda aluno de Medicina. "Uma pandemia é um desafio que qualquer infeciologista pensa ter na carreira, mas ninguém esperava isto".