Auditoria revela que sete marcos foram validados sem verificação de conflito de interesses. Ministério das Finanças divulgou após sentença em tribunal.
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O ministro das Finanças, Fernando Medina, escondeu durante cinco meses um parecer da Comissão de Auditoria e Controlo (CAC) do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) onde constam várias falhas ao sistema de controlo interno destes fundos, com riscos de conflitos de interesses e de duplo financiamento. O Ministério das Finanças rejeitou divulgar o parecer mesmo após a Comissão de Acesso a Documentos Administrativos (CADA) ter recomendado a sua divulgação. Só depois de uma sentença do tribunal é que foi revelado.
20,6 mil milhões de euros é quanto Portugal vai receber do PRR. Aos 16,6 mil milhões, somam-se 4 mil milhões da reprogramação em curso. Portugal falhou o terceiro pedido de pagamento, mas devido à reprogramação pôde adiar.
O parecer da CAC é de setembro do ano passado e avaliou o cumprimento de 18 marcos e duas metas referentes ao segundo pedido de pagamento do PRR, que viria a ser aprovado e pago por Bruxelas. O documento, a que o JN teve acesso pela via judicial, mostra que sete dos 18 marcos foram aprovados sem declarações de inexistência de conflitos de interesses e que havia risco de duplo financiamento em nove projetos. Mostra ainda que, "de um modo geral, as regras da contratação pública não se encontravam concluídas".
Em setembro do ano passado, quando as críticas à execução do PRR já estavam na ordem do dia, o JN pediu o parecer da CAC ao Ministério das Finanças por três vezes, em setembro e outubro. Sem resposta, o JN recorreu à CADA que, por sua vez, determinou em dezembro que "deverá ser facultada a documentação solicitada", mas nem assim Medina divulgou.
Procuradora revelou falhas
Entretanto, em janeiro, uma parte das críticas constantes no parecer secreto foi divulgada pelo Ministério Público. De forma transparente e sem que estivesse obrigada por lei, a procuradora-geral-adjunta Ana Carla Mendes de Almeida, que integra a CAC, transcreveu partes do parecer secreto num relatório onde assinala "insuficiências ao nível dos procedimentos" de "prevenção de conflito de interesses, fraude, de corrupção e duplo financiamento".
Ainda em janeiro, o JN recorreu ao Tribunal Administrativo de Lisboa para aceder ao parecer. O tribunal proferiu sentença a validar a decisão da CADA, obrigando "a disponibilizar" o parecer, o que aconteceu a 28 de fevereiro, cinco meses após a sua elaboração. Fernando Medina arriscava multa caso não obedecesse.
O JN questionou a Estrutura de Missão "Recuperar Portugal", que gere o PRR, sobre se as lacunas já foram corrigidas. Na resposta, a estrutura remeteu essa informação para a CAC, mas disse que "já produziu e remeteu" o "follow-up seguindo as recomendações efetuadas nesse parecer". O JN contactou de novo o Ministério das Finanças, ponto de contacto da CAC, mas não obteve resposta.
Presidente da CAC depende das Finanças
O presidente da CAC do PRR é o inspetor-geral das Finanças, António Ferreira dos Santos, sob dependência de Fernando Medina. No seu documento, a procuradora-geral-adjunta Ana Carla Mendes de Almeida, que integra a CAC, escreveu que "não se encontra salvaguardada uma adequada segregação de funções" na CAC, pois este órgão "deve supervisionar e realizar auditorias" ao controlo interno do PRR e, ao mesmo tempo, emitir pareceres sobre pedidos de pagamento.
O parecer
Conflitos de interesses
Sobre sete dos 18 marcos é evidenciada a necessidade de "assegurar a mitigação do risco de conflito de interesses" ou de "reunir as declarações de inexistência de conflitos de interesses dos intervenientes". Estas declarações têm valor legal. Não se conhecia esta crítica.
Duplo financiamento
Foram identificados riscos de duplo financiamento em nove projetos. O duplo financiamento é quando o mesmo projeto recebe fundos europeus de duas ou mais proveniências diferentes. Dos nove projetos, sete tinham risco "baixo" de duplo financiamento, um "médio" e um "elevado". Esta identificação também era desconhecida.
Meta por verificar
Dois marcos e uma meta foram validados pela CAC sem que tivessem terminado as avaliações necessárias. "Não foi possível verificar a eficácia operacional" do Banco Português de Fomento, bem como o controlo do duplo financiamento da nova versão do Balcão Único do Prédio, nem estava concluída a instalação das estruturas regionais da Proteção Civil. Esta crítica foi assinalada pelo Ministério Público.
Execução e recursos
A última página do parecer inclui nove recomendações, algumas "suscetíveis de afetar a plena execução do PRR", lê-se. Entre elas está a necessidade de reforço do quadro de pessoal do PRR. Esta crítica também foi citada pelo Ministério Público.
Parlamento "fintado"
O presidente da CAC disse, no Parlamento, em setembro, que a entidade que lidera deu "parecer positivo ao segundo pedido de pagamento" do PRR, mas não disse que críticas tinha o documento. A Subcomissão para o Acompanhamento dos Fundos Europeus e do PRR, da Assembleia da República, também nunca o recebeu.