Alargamento foi aprovado há quatro anos, mas a falta de gâmetas no SNS trava cumprimento pleno da lei de 2016. Especialistas já propuseram a compra a privados, mas nunca avançou.
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Em 2016, o Parlamento aprovou o alargamento do acesso a técnicas de procriação medicamente assistida (PMA) a mulheres sem parceiro ou casais de mulheres, cuja regulamentação saiu no final desse ano. Nos quatro anos que se seguiram, não chegaram a 20 as beneficiárias em centros públicos, contra centenas nos privados. No pico de atividade, como já sublinhou a ex-presidente do Conselho Nacional de PMA, "as mulheres que conseguiram tratamentos no SNS contam-se pelos dedos de uma mão". A razão, dizem os especialistas, é simples: não há gâmetas masculinos. Um problema há muito identificado, tendo o grupo de trabalho criado pelo Governo recomendado, em maio de 2021 como medida transitória, a aquisição de gâmetas aos privados. O que nunca avançou.
Sem esconder a frustração, o presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, Pedro Xavier, explica que, nestes casos, "é sempre necessário gâmetas masculinos doados", mas, com "o tempo de espera, neste momento, à volta dos três anos, a acessibilidade a tratamentos é muito baixa". Situação que também se verifica nos "casais heterossexuais, onde o número de tratamentos também é baixo", o que considera "confrangedor" quando comparado com a atividade dos privados. Ouvida no seu último dia de mandato no CNPMA, Carla Rodrigues falou num resultado "iníquo".
Acresce, prossegue Pedro Xavier, que "as mulheres sem parceiro chegam em idades mais elevadas [média de 38 anos] do que os casais de mulheres [32 anos] ou heterossexuais [34 anos]". Fazendo com que a "eficácia do processo não seja a melhor", esclarece o presidente da Sociedade Europeia de Reprodução Humana e Embriologia, Carlos Calhaz Jorge. Como confirmam os dados que já apresentou aos deputados: em 2021, das 227 inseminações intrauterinas com esperma de dador em mulheres sem parceiro (total nacional, que inclui procedimentos nas unidades públicas e privadas), só 11% resultaram em partos.
Dádivas são residuais
Ao Banco Público de Gâmetas - que, reiteram, devia ser autónomo do Centro Materno Infantil do Norte onde está sediado - falta investimento. "Por mais que se esforce, não consegue aumentar o número de dádivas, que são absolutamente residuais", frisou Carlos Calhaz Jorge. Em 2021, dos 470 ciclos com espermatozoides doados, somente 4,3% respeitam a centros públicos. Valor que cai para os 2,7% nos ovócitos (ver infografia). Naquele ano, de acordo com o relatório do grupo de trabalho, o banco público tinha 190 packs de gâmetas masculinos (-9,5%) e 34 femininos (-15%).
Razão pela qual os peritos recomendaram ao Executivo, como medida extraordinária e transitória, a "aquisição direta, pelo centros de PMA, pelo banco público ou centros afiliados, de gâmetas doados ao setor privado" para garantir resposta a tratamentos em espera há mais de um ano. Do ponto de vista estrutural, preconizavam "autonomizar o banco público", "dimensionar as equipas" e dotar o banco e os centros dos meios técnicos necessários. O certo é que, em 2020, o financiamento da atividade assistencial contratada do banco público cresceu 1% para os 734 mil euros (contra 410 mil em 2018); e a da PMA caiu 12,2% para os 7,2 milhões. Concluindo os peritos que "o impacto do alargamento dos beneficiários refletiu-se, essencialmente, no aumento das listas de espera".
"Absolutamente nada foi feito. Estamos na faixa mais extrema do espetro do SNS, estamos quase a sair borda fora", concretiza Pedro Xavier. Para quem é "muito duro perceber que há mulheres, há anos, a tentar fazer tratamento e que não vão conseguir, porque não têm acesso no SNS nem meios para o fazer no privado".
Banco Público
O banco público é responsável pelo recrutamento e seleção de dadores de óvulos e espermatozoides que, depois, são utilizados em técnicas de Procriação Medicamente Assistida.
Paragem na pandemia
Durante o primeiro estado de emergência, os centros apenas garantiram procedimentos urgentes, como preservação da fertilidade em contexto oncológico. Segundo Pedro Xavier, "a recuperação dos atrasos não se concretizou".