Depois de um 2020 atípico, as urgências dos hospitais públicos estão outra vez cheias de doentes, em particular de casos não urgentes que deviam ser atendidos nos cuidados primários.
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A procura voltou aos níveis pré-pandemia, com agravantes: há mais infeções respiratórias não covid-19, há muitos doentes crónicos a descompensar e os espaços físicos não têm capacidade para acolher tantos utentes com o exigível distanciamento. Quem está no terreno teme "uma enorme sobrecarga" nos próximos meses.
Em setembro, os doentes não urgentes (azuis) e pouco urgentes (verdes) representaram 41% do total de urgências de todo o país, face a 37% no mês homólogo de 2019. São 183 mil episódios (6100 por dia) que deveriam ter tido resposta nos cuidados primários.
As dificuldades dos centros de saúde, que têm acumulado a atividade assistencial com a resposta à pandemia e à vacinação, continua a ser um dos principais problemas. E há também o lado cultural, de quem sempre foi diretamente à urgência hospitalar e ali encontra resposta, leia-se exames e análises, para todos os males.
Desde junho que a Urgência do Hospital de S. João, no Porto, bate recordes. "Há quatro meses consecutivos que superamos os números de 2019, que já era o ano com mais urgências", frisa o diretor do serviço Nélson Pereira. No maior hospital do Norte, o peso dos doentes com pulseiras verdes e azuis (35%) significa atender mais 200 doentes num dia difícil, como foi a última quarta-feira, e "compromete a resposta que não é elástica". Nos próximos meses, prevê o médico, "vai haver uma sobrecarga progressiva, que ninguém vai aceitar. Vamos ter tempos de espera prolongados e, eventualmente, incidentes críticos que depois é difícil digerir" (ler entrevista ao lado).
Projeto não funciona
Em Gaia, a afluência à urgência tem sido "crescente" - os números de setembro "estão muito próximos" do mesmo mês de 2019 - e há duas preocupações: um inexplicável aumento dos casos emergentes, que têm de ser atendidos de imediato (ler caixa ao lado) e o problema crónico dos episódios pouco ou nada urgentes.
O centro hospitalar de Gaia/Espinho implementou, em colaboração com os cuidados primários, um projeto para dar resposta a estes doentes com marcação de consulta no próprio dia ou no dia seguinte no centro de saúde, mas os resultados não estão a ser satisfatórios, assume o diretor da urgência. "Não está a funcionar. Os doentes não querem ir para o centro de saúde, preferem ficar horas à espera no hospital", lamenta José Luís Almeida.
Com tal pressão, com a gripe, sem os cuidados primários a funcionar em pleno e se as pessoas abandonarem totalmente as máscaras que também protegem contra outras infeções além da covid-19, José Almeida teme "que o inverno seja bem pior do que os anteriores".
No Hospital de Braga, as chamadas "falsas urgências" também assumem uma dimensão expressiva. Na Urgência geral, os doentes com pulseiras azuis e verdes correspondem a 45% do total e na urgência pediátrica correspondem a 63%. O que leva, "inevitavelmente, ao aumento anormal dos tempos de espera, bem como à acumulação de pessoas nestes serviços", refere o hospital, em resposta ao JN. Em ambos os serviços, adultos e crianças, "a afluência já está nos níveis pré-pandemia", acrescenta a unidade.
Tanto Nélson Pereira como José Luís Almeida pedem regras claras para organizar o acesso aos cuidados de saúde. Mas, antes disso, adverte José Luís Almeida, "é preciso assegurar que as coisas funcionam. É preciso que as consultas nos cuidados primários existam de facto e não pode haver vagas limitadas que não chegam para todos".
Duplicaram casos gravíssimos no Hospital de Gaia
Na urgência do Centro Hospitalar de Gaia/Espinho, o número de doentes que chega em risco de morte iminente (pulseira vermelha) duplicou em setembro comparativamente com o mesmo mês de 2019, passando de 20 para 41 casos naqueles meses.
"Não me recordo de a sala de emergência ter uma atividade tão elevada como agora e estou no hospital desde 2013", assinala o diretor da urgência. José Luís Almeida não tem uma explicação, mas tem observado muitos acidentes de viação graves e "pessoas com doenças crónicas pesadas que, provavelmente, não tiveram o mesmo seguimento que tinham antes da covid". Entre essas patologias, destacam-se as cardiorrespiratórias, nomeadamente a insuficiência cardíaca que obriga a um seguimento apertado e as doenças pulmonares.
O problema não parece ser transversal, já que vários hospitais contactados pelo JN apontam para uma estabilização do número de doentes vermelhos. De resto, os números do Portal do SNS até apontam em sentido contrário. Em setembro de 2019, os hospitais receberam 1485 doentes com pulseira vermelha, mais 252 do que em setembro último.
Pormenores
Santa Maria com médias de 2019
No Centro Hospitalar Lisboa Norte (inclui o Hospital de Santa Maria) a urgência central (de adultos) teve em setembro uma média de 450 casos diários, ao nível do período homólogo de 2019. Na urgência pediátrica, verificou-se a mesma tendência, referiu o hospital.
Mais doentes muito graves
Além dos "muitos casos não urgentes", o Hospital de Santa Maria registou em setembro um aumento dos doentes graves e muito graves (pulseiras amarelas e laranjas).
Picos em outubro
No Centro Hospitalar Lisboa Central (inclui o S. José), a afluência em setembro aproxima-se dos valores de 2019. Nos primeiros dias de outubro, a urgência geral teve um pico no dia 4 com 464 episódios e a de pediatria no dia 1 (262).
485 mil episódios de urgência atendidos nos hospitais SNS em setembro último, menos 35 mil do que no mês homólogo de 2019. Após um 2020 atípico, a afluência pré-pandemia está de volta.
183 mil doentes que foram à urgência em setembro deste ano eram pouco ou nada urgentes, dá uma média de 6100 "falsas urgências" por dia em todo o país, segundo dados do Portal do SNS.