Entrevista a Mónica Farinha, presidente do Conselho Português para os Refugiados.
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Milhares de ucranianos começam a chegar, naquele que é o maior êxodo migratório que a Europa enfrenta desde a Segunda Guerra Mundial. A presidente do Conselho Português para os Refugiados (CPR) não esconde que a resposta inicial foi descoordenada, mas sublinha que várias entidades governamentais centralizaram entretanto a gestão. Assegura que as respostas a refugiados de outras proveniências não foram descuradas e assume serem necessários recursos adicionais.
Em menos de um mês recebemos mais refugiados do que em seis anos. Temos capacidade de resposta para este movimento?
Temos de ter. Faz parte da nossa história, faz parte da forma como nós entendemos os refugiados. O maior problema nesta fase é que alguns aspetos são imprevisíveis e não podem ser planeados. A evolução numérica tem sido muito rápida, em 22 dias de guerra chegámos a um número de três milhões de pessoas deslocadas. Não sabemos quantos chegarão a Portugal, não sabemos qual será a duração do conflito, não sabemos se haverá vários fluxos ao longo do tempo, e depois não sabemos qual será o impacto.
Não serão demasiados "não sei" para um movimento que exige respostas também elas rápidas e eficazes?
Sim, mas a questão dos fluxos é que não seguem regras racionais e o "não sei" faz parte deste trabalho. Claro que depois há também exemplos positivos relativamente à forma como Portugal está a encarar toda esta dimensão, há uma grande identidade com os deslocados ucranianos. Há também uma dimensão de política externa que é relevante. O acolhimento é uma forma muito poderosa de demonstrarmos de que lado estamos, de condenar o invasor. E é impossível ficar indiferente perante as imagens, porque na prática estamos todos a assistir à guerra em direto e vemos o impacto muito pessoal e muito emocional que tem nas famílias e nas pessoas.
Há quem defenda que deveria haver um registo centralizado, algum mecanismo de coordenação de todo este movimento de grupos que vão diretamente buscar refugiados. Tem havido desarticulação no terreno?
De uma forma muito operacional, esta evolução tão rápida permitiu que houvesse essa descoordenação, e muitas vezes os fluxos não são possíveis de antecipar e há uma reação de emergência assim que acontecem. Tendo em conta todo o impacto que teve na nossa sociedade, a coordenação só agora está a ficar mais clara e mais estruturada.
Quem é que neste momento está a assumir a coordenação?
Várias entidades. Por um lado, há o SEF que tem uma plataforma online, que já está a funcionar, relativamente à apresentação dos pedidos de proteção temporária. Por outro lado, a Segurança Social criou uma plataforma para registo das crianças não acompanhadas, que é um problema muito sério e em que a informação e o registo são fundamentais na identificação quer das que estão em Portugal, quer daquelas que estão em trânsito. E, finalmente, o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), que está a agregar toda a componente do acolhimento.
A maioria das pessoas vem com intenção de ficar provisoriamente, querem voltar à Ucrânia. As respostas estão a ser adequadas neste sentido?
A proteção temporária garante esse tipo de apoio e de proteção excecional.
Indo além da questão jurídica, o facto de ser uma passagem provisória afeta os mecanismos de acolhimento?
Na prática, os mecanismos são sempre idênticos. O acolhimento deverá ser sempre o mais estável possível, as crianças deverão permanecer unidas, as escolas deverão integrar imediatamente os agrupamentos onde permanecerem. Claro que depois poderá haver aspetos de ajuste, e a perspetiva jurídica acaba também por ser muito importante porque essas pessoas têm de estar regulares no território e a proteção temporária é realmente o mecanismo indicado. Não é possível fazer uma triagem individual, ao contrário dos outros requerentes.
A figura da proteção temporária é a ideal ou foi usada para evitar o processo burocrático do estatuto de refugiado?
Não, creio que não. Este mecanismo foi pensado exatamente para situações como esta e claro que vai ter impacto nos serviços, que provavelmente ficariam bloqueados se tivessem de tratar de uma triagem individual, mas por outro lado estamos perante uma situação em que não há dúvida nenhuma nem da causa, nem de ser o mecanismo adequado. Ele já foi utilizado em Portugal, ainda antes da transposição da diretiva da União Europeia, em 1998, quer relativamente ao Kosovo quer relativamente à Guiné-Bissau, e acolhemos no âmbito do mesmo mecanismo 2000 kosovares e cerca de 4000 nacionais da Guiné-Bissau.
Não concorda com quem considera que acaba por haver discriminação em relação a refugiados que chegam com outro estatuto?
O facto de estar a ser implementado mecanismo de proteção temporária para este fluxo maciço de pessoas não proíbe que apresentem um pedido de proteção internacional. A lei prevê que a todo o tempo possam apresentar. Relativamente a esta população, por oposição a outros requerentes e refugiados, não gostaria de falar numa espécie de competitividade nem estabelecimento de diversas categorias, por uma razão muito simples: esta situação tem contornos tão específicos que exigiu uma resposta imediata.
Nunca vi uma situação com tanta proatividade como esta
A reação espontânea da sociedade é positiva ou trouxe problemas logísticos?
Tem uma componente muito positiva de reação e uma componente de alguma confusão que decorre ainda da descoordenação que falava há pouco. Globalmente creio que é positiva, mas não é inédita. No CPR, tivemos também uma resposta muito positiva quer no caso do acolhimento dos nacionais da Síria, quer no caso dos nacionais do Afeganistão. Não com este nível de proatividade, de ter pessoas a organizar caravanas e partir para a fronteira da Ucrânia para resgatar cidadãos ucranianos. Isso acho que nunca vi, e trabalho no CPR desde 1994. Nunca vi uma situação com tanta proatividade como esta, mas estamos a falar de um acontecimento que ocorre no nosso continente e isso tem um impacto tremendo.
Recentemente tivemos a subida de alguns movimentos de extrema-direita e xenofobia ou resistência em relação à imigração. Estamos num momento de viragem, ou será esta uma resposta pontual?
É algo que temos discutido muito no CPR, se haverá uma mudança de perspetiva e o que vai acontecer a seguir. Francamente não consigo dar uma resposta muito concreta para isso. Que há diferenças, nomeadamente quanto à utilização da palavra crise, há. Em 2015, o ano em que a Europa acolheu um milhão de requerentes de proteção internacional, a tónica da crise era sempre colocada numa perspetiva dos países europeus: crise de refugiados na Europa. Agora, a tónica é colocada na Ucrânia e nas pessoas, nos refugiados ucranianos. Não é apenas uma questão semântica, é um bom indicador.
As medidas adotadas pelo Governo português são suficientes para acautelar e integração, sobretudo de crianças?
Na prática, o que vivem estas crianças é o percurso de qualquer refugiado, de qualquer requerente, não há, infelizmente, grandes diferenças. Aquilo que os refugiados procuram em primeiro lugar é segurança e proteção e só isso já terá um efeito muito tranquilizador.
Mas neste caso há uma escala maior. Há recursos suficientes, nomeadamente para apoiar a aprendizagem da língua nas escolas?
Tudo vai exigir recursos adicionais. Aquilo que se espera é que haja uma repartição em todo o país, que as diversas comunidades acabem por fazer um papel protetor relativamente a todas essas pessoas. Há também uma grande diferença relativamente aos outros fluxos que Portugal tem recebido, que é o facto de já existir uma comunidade significativa ucraniana com a qual há todas as afinidades culturais e linguísticas e esse aspeto é muito importante porque implica proteção e relação imediata com uma comunidade que é a mesma.
Já foi simplificado o reconhecimento das qualificações profissionais
Que preocupações excecionais poderá haver, principalmente ao nível do apoio ao emprego, quando a esmagadora maioria dos refugiados são crianças e mulheres?
O perfil das pessoas que estamos a receber ainda não está determinado. Sei que já houve mais de 14 mil pedidos de proteção subsidiária, sendo que alguns são de cidadãos ucranianos que já se encontravam em Portugal. Há alguma expectativa de que estas pessoas comecem imediatamente a trabalhar e isso nem sempre é possível. Há um aspeto muito importante, no qual terá certamente de haver um reforço de recursos, que é a aprendizagem da língua portuguesa. Uma das medidas que foi também já avançada tem a ver com a simplificação do reconhecimento das qualificações profissionais, que é sempre complexa e com muitas dificuldades relativamente à população refugiada, o que é claramente positivo.
Há empresas com dificuldade em captar trabalhadores nacionais que direcionam as ofertas de emprego para os refugiados. Não poderá haver algum aproveitamento desta situação?
Sim. Por isso é que a informação é fundamental: saber exatamente o que é possível, como funciona o mercado laboral em Portugal.
Já referiu a preocupação com menores sem documentação. O que está a ser feito para evitar o risco de tráfico, de caírem nas malhas da pedofilia e prostituição?
Quer o ACNUR quer a Unicef já têm equipas no terreno, nas fronteiras, a tentar partilhar informação e fazer o máximo de registos em conjunto com os estados. Esta informação tem de ser partilhada entre todos os estados-membros para garantir que mais tarde as famílias poderão reunir-se.
Mas que mecanismos efetivos de prevenção e proteção temos?
Informação. É a única hipótese que há. Porque é impossível controlar todas as situações, mas se houver informação para as pessoas terem cuidado com quem contactam, coisas tão simples como registar os nomes, as matrículas, os lugares, tudo isso é muito importante nesta fase. Na altura do tsunami, a Unicef entrou também em ação porque houve muitos casos de tráfico. É habitual, infelizmente, que assim aconteça. E nós cingimo-nos muito relativamente às crianças, mas também as mulheres e as jovens estão expostas a este tipo de risco e de abuso.
Até onde vai a capacidade nacional para receber pessoas?
Não sei dizer, e acho que ninguém consegue.
Mas existe algum tipo de levantamento de estruturas como a habitação?
Existe e posso dar-lhe como exemplo o Programa Nacional de Reinstalação, que significa que Portugal acolhe refugiados que já foram reconhecidos noutros países, mas que não conseguem garantir nem a segurança, nem a proteção efetiva. Portugal tem acolhido refugiados reinstalados da Síria, do Iraque, do Sudão, do Sudão do Sul, da Somália. É feito um levantamento anual pelo Alto Comissariado para as Migrações.
Mas há um limite a partir do qual não poderemos receber mais?
Creio que ninguém sabe, muito francamente. Porque esta situação tem contornos muito específicos. A duração do conflito vai ser determinante quer para a questão da solidariedade, quer para a questão da estabilidade.
O plano de ação para receber refugiados de outros quadrantes do globo foi repensado, ou prossegue normalmente?
Tanto quanto é dado a conhecer ao CPR, prossegue normalmente. Portugal tem participado nos variados mecanismos de proteção que existem. Continua a evacuação humanitária do Afeganistão. Os resgates de barcos humanitários no Mediterrâneo. Continuamos a acolher menores não acompanhados provenientes de campos de refugidos na Grécia. São exemplos de resposta às diversas situações de proteção, mas acredito que agora seja efetuado um reajuste e mais tarde será importante acionar também mecanismos de solidariedade e de partilha, entre todos os estados da União Europeia. Até porque, tal como aconteceu em 2015, provavelmente será necessário auxiliar os estados-membros que estão mais diretamente afetados por estes fluxos. Basta ver os números na Polónia, que são elevadíssimos.
Poderá haver alguma dificuldade na resposta a estas comunidades que já estavam a requerer assistência e a vir para Portugal?
A nossa ideia é aproveitar alguns dos aspetos que foram agora criados no acolhimento dos deslocados ucranianos e estendê-los aos restantes refugiados. Ou seja, não agravar nem criar aqui diferenciação de tratamento e aproveitar este caminho que foi agora aberto.
O CPR tem 30 anos marcados por muitas dificuldades e depende dos fundos governamentais e de projetos europeus. Têm tido apoio por parte do Governo ou da UE para fazer face a este momento excecional, ou continuam a debater-se com grandes dificuldades financeiras?
(Risos) Acho que faz parte do nosso ADN, e das outras organizações, viver dessa forma. Relativamente a este novo êxodo ainda não há quaisquer soluções financeiras, mas sou uma otimista por natureza. O CPR tem vivido momentos difíceis, mas conta com uma equipa muito estável e muito dinâmica, que se esforça sempre por se adaptar a situações muito rápidas. A pandemia foi um bom exemplo dessa capacidade. Dito isto, continuamos a concorrer a todos os financiamentos europeus disponíveis. Continuamos com o apoio por parte das entidades governamentais, o MAI, o ACM. Continuamos também como parceiro operacional do ACNUR. E tentamos gerir o melhor possível para manter o apoio a todos os requerentes e refugiados.