São Vicente e Ventosa, aldeia alentejana de Elvas com 732 habitantes, foi onde mais se votou no Chega: 1 em cada 4 pessoas (28,2%). No interior envelhecido e deserto, o voto na extrema-direita é um berro de protesto.
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João Ricardo Charruadas sorri e a pergunta fica a flutuar. Os olhos dizem mudamente que não, mas estão muito abertos e ele verbaliza assim, com reticências a bailar: "Quem sabe, quem sabe". A pergunta que o fez folgar foi: nas eleições legislativas ordinárias de 2025, o Chega vai ganhar aqui a sua primeira freguesia?
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João Ricardo, 30 anos, na política desde 2005, é o presidente da Junta PS de São Vicente e Ventosa, freguesia alentejana do concelho de Elvas, distrito de Portalegre, no Interior raiano que bordeja Badajoz, Espanha. É a freguesia de Portugal Continental, com 732 habitantes e a segunda maior em área no país (mais de 100 km2), onde, em proporção, mais se votou no partido de André Ventura, que é do espetro da extrema-direita, nacionalista, conservador e economicamente liberal: 28,28%. "Aqui, como em todo o lado, vota-se mais na pessoa e nas qualidades pessoais do que na ideologia ou no partido. Mas o Chega tem tido, concordo, um crescimento espetacular. Por isso, quem sabe". O autarca, que também é motorista e transporta crianças todo o dia, lidera a Junta há dois mandatos, sempre com maiorias absolutas socialistas. Se concorrer ao 3.º mandato, sabe que tem a vitória pronta no papo. Ir com ele pela freguesia é como acompanhar um cata-vento: sabe o nome de todos, cumprimenta à esquerda, à direita e ao centro, é merecidamente popular.
Mitos que se abatem
Em 2019, no concelho de Elvas, o Chega teve 381 votos (4,5%) e ficou em 6.º, abaixo da CDU, CDS, BE e PSD. Em 2022, o PS torna a vencer, mas o Chega salta sete vezes e tem 1770 votos (18,7%).
A prosperidade do Chega, novo fenómeno politicamente sensacional (surgiu em 2019, é já 3.º partido mais votado, 7,2%, 385 559 votantes em 30 de janeiro de 2022), tem um espelho cristalino no concelho de Elvas. Nas legislativas de 2019, houve 381 votos no Chega, 4,5%. Nesse ano, o PS já venceu com maioria, 46%, e o Chega ficou em 6.º, abaixo da CDU, do CDS, do BE e do PSD, que ficou em 2.º lugar. Passam dois anos. O PS torna a vencer, engorda 500 votos, o PSD, em 2.º, também, mais 100, mas é o Chega que dá um salto de varapau: 1770 votos (18,7%), 3.º lugar no concelho. A passada é profunda e vasta: o partido de radicalismo direitista cresceu sete vezes em dois anos. Mais: nas sete freguesias do concelho de Elvas, o Chega ficou em 2.º em cinco delas, com São Vicente e Ventosa a rabear alto a cabeça de hidra revoltada.
Os mitos, como os cavalos, as colinas ou os corações, também se abatem e o plácido Alentejo já não é comunista: dos 20 municípios que foram sempre do PCP, ou da CDU, 17 viram este ano o Chega suplantar o horizonte carmim do Partido Comunista Português. São Vicente e Ventosa é o rosto da nitidez: foi comunista 13 mandatos, de 1938 até 1990, 52 anos seguidos. Mas ali já não o é há múltiplos anos, desde a década de 90 e do fim dos 10 anos de Cavaco Silva, em 1995, quando o socialista António Guterres entrou de rompante na política nacional e povoou o país com o marketing de corações rosa-rubros. Daí para cá, o PS ganhou seis mandatos, só interrompido uma vez pelo PSD (2001-2005). Mas agora há um novo animal político a gingar na planície - e promete agigantar-se, a começar no volume da voz.
O Presidente da República ali seria Ventura
Gabriel Mithá Ribeiro, novo deputado dos 12 eleitos para o Parlamento pelo Chega, está a falar na SIC, e o ecrã da mercearia Agro Reis está no alto, atrás de Joaquim Serpa, agricultor e vaqueiro de 65 anos que cria em São Vicente e Ventosa 100 cabeças de gado bravo para toureio. O ideólogo Mithá discorre sobre a síndrome de que diz sofrerem os adeptos do seu partido: "Violência simbólica, terrorismo identitário, terrorismo moral e, no limite, sofrem até violação mental. É isso que se está a fazer às pessoas do Chega".
Joaquim ouve-o, mas nada o inquieta, nem a suposta discriminação: todos ali sabem em que partido votou - de repente saca do telemóvel, folheia-o, mostra a foto do seu boletim de voto, "veja, veja!", e aponta a cruz de tinta azul muito firme no quadrado do Chega.
"Por mim, o Ventura já era o presidente da República!", diz em bom som, num sotaque cantante raiano, muito pausado, o vaqueiro Joaquim. "É um homem frontal. Diz as coisas como são. Com verdade. Sem medo. É um homem às direitas. É firme. Mas tem coração". E Joaquim Serpa, que já votou três vezes no Chega e vai continuar, reergue um estandarte que ali todos conhecem, mas o resto do país não: nas presidenciais de 2021, na freguesia de São Vicente e Ventosa, André Ventura teve 113 votos e ganhou a Marcelo Rebelo de Sousa, o presidente incumbente, que só teve 110. "O meu voto é um protesto?", devolve Joaquim. E responde a exclamar. "Acredite que sim! Estamos fartos de estar aqui sozinhos! E esquecidos! Claro que estamos a protestar!".
O Chega fala alto e claro
André Churra está a 14 km da freguesia, recortado na melancolia verde exuberante da relva do campo de rugby de Elvas, onde jogou 10 anos. É engenheiro agrónomo de São Vicente, tem 30 anos, e esta semana desfiliou-se do CDS, que na sua freguesia teve uma soma soturna: 15 votos contra 97 do Chega. Vê tudo com lucidez: "Sente-se o descontentamento. As pessoas aqui sentem que algo não está bem nas suas vidas e protestam. E bem alto. É um protesto ativo, é uma descarga de frustração. Mas não devemos culpá-las, nem culpar o Chega. Devemos é perceber porque é que isso acontece. E depois agir".
André Churra, que esteve em 2015 na primeira direção da Juventude Centrista com Francisco Rodrigues dos Santos, aponta uma certa falência da direita centrista. "O discurso moderado do CDS, como o do PSD, não traz empatia, é elitista, diz pouco aos daqui. E o Chega é como o chão, é simples, claro, direto às pessoas do campo, agricultores, caçadores, das forças de segurança, funcionários públicos, idosos, pessoas comuns. E essa retórica, é o país que temos, é difícil, mesmo muito difícil de contrariar".
Protestar até isto virar
Ana Maria, 60 anos, e Jorge Silva, 65, estão na esplanada limpa e fria do seu Café Bip Bip, que exploram há 15 dias. Fica na maior rua das sete ruas da freguesia, pintalgada de laranjeiras, entre o casario branco e baixo e democrático. O silêncio reverbera entre o chilrear das aves. Falam sem papas, a troar. "O país está à deriva, uma deriva para trás. Está de rastos, saúde, justiça, respeito. Só o André, um grande patriota, é que o pode levantar. Eu ouço-o e arrepio-me, é o único a dizer a verdade".
Ele veio do Meco, ela esteve muitos anos em Moçambique, voltou aflita em 1974. Continua: "Não admito: os nossos governantes aceitam todos os que vêm de fora e dão-lhes logo emprego. Primeiro os nossos! É preciso pôr mão nisto! Isto não é um país, é uma pantomina. Claro que votamos no Chega. É protesto? Pois claro que é! E escreva aí, sem medo: vamos continuar a protestar até isto virar".
Elvas em comparação com o país
A perder habitantes desde 2001
No ano 2001, moravam em Elvas 23 361 pessoas. Em 20 anos perdeu 2628: são agora 20 733 habitantes. O número médio de indivíduos por km2 é baixo: 32,8; a média do país é muito mais alta: 112,2.
Cada vez mais idosos e com menos jovens
Em 2001, o concelho já tinha mais idosos do que jovens: 131 seniores por cada 100 jovens (0-14 anos). 20 anos depois, o número de idosos galgou: são agora 174 por cada 100 jovens.
Saldo negativo em nascimentos
Em 2020, a diferença entre nascimentos e mortes foi negativa: saldo natural de menos 178 pessoas. O saldo migratório é também negativo (menos 61 pessoas).
Mais desemprego do que a média nacional
Em 2020, o número de desempregados inscritos no IEFP era 8,7% em Elvas. É uma média superior à de Portugal continental, que está agora nos 5,8%.
Ali ganha-se menos do que no resto do país
O ganho médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem é, em todo o país, de 1206 euros. No Interior de Elvas, a média de vencimentos é bastante inferior: 892 euros por mês.
Poder de compra também está abaixo
O poder de compra per capita no concelho tem vindo a subir, mas está ainda abaixo da média do país: era de 84,9 em 2011; é de 90,5 em 2019, para uma taxa de 100 em Portugal Continental.