Muito se quantificou e calculou nestes agrestes anos de pandemia. Letalidades, incidências, positividades, mortalidades, efetividades. Votando as crianças à "invisibilidade". As suas emoções e vivências. Sentires e pulsares. Que não se medem. Que não se traduzem em equações. Escutam-se. Assim, tão simplesmente. Para nos dizerem: "Era muito difícil ser criança, tínhamos que ficar em casa fechados".
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Disse-o, desta forma, uma criança num grupo de discussão focalizada dos 6-8 anos, no âmbito do estudo "A pandemia pela voz das crianças", levado a cabo pela Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN), com a colaboração da investigadora Teresa Dias do Centro de Investigação e Intervenção Educativas da Faculdade de Psicologia do Porto. Cuja única missão era ouvir as nossas crianças. E aferirem do seu bem-estar social e psicológico. Sendo essa, precisamente, uma das várias recomendações: "Ouvir as crianças, tomar as suas ideias como válidas e procurar refletir as mesmas em propostas concretas".
Identificaram os seus heróis e heroínas durante a pandemia. Dos médicos e enfermeiros, passando pelos cientistas, forças de segurança, professores, nunca esquecendo os pais. Nesse lado positivo da vida em bolha: "Os meus pai estavam em casa e foi bom porque estávamos mais próximos (grupo de discussão focalizada dos 10-12 anos)"; "Porque eu às vezes jogava uns jogos de tabuleiro com a minha família e era engraçado fazer batota (grupo de discussão focalizada dos 8-10 anos)".
Na "arca das recordações" desenvolvida por este grupo de trabalho, na sua linha positiva, sobressai o "ter mais tempo para". Para "acabar as minhas construções no Minecraft", para ficar "mais tempo em casa com a minha mãe". Porque, antes, "não tínhamos tanto tempo, tinha que estudar para a escola, estudar para os testes, depois tínhamos aulas à tarde, tínhamos Educação Física, no fim do dia tinha desporto, por isso não conseguia estar muito tempo para conviver" (grupo de discussão focalizada dos 10-12 anos).
O que ficou e ficará
Numa arca onde guardam o medo - "O pior para mim foi pensar que posso passar a doença para os meus familiares" -, numa consciência da gravidade e do bem comum. A falta do sentir: sentir o toque, o beijo, o abraço. Das primas que nasceram e que ainda não conheceram. Do partir. Da morte. Do luto. Do "querer recordar essa última chamada".
Numa dimensão relacional com os avós única. Numa pandemia que afastou dois extremos etários que mais se unem. Causando tristeza. E desejos. E se tivesses uma varinha mágica? "Queria aquelas luvas que dão para abraçar alguém, mas sem tocar? Eu queria que em todos os fins de semana as crianças fossem visitar os avós e a família toda e pudessem usar essas luvas" (grupo de discussão focalizada dos 8-10 anos).
Na arca guardariam "o tempo em que ficava com a avó antes de morrer" (grupo de discussão focalizada dos 6-8 anos). E fotografias de familiares, todos abraçados. E a primeira máscara, uma vacina, um frasco de álcool gel. E se, ainda hoje, vemos nas janelas dos prédios aqueles arco-íris de que "vai ficar tudo bem", é caso para nos questionarmos: Ficou?
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Saúde mental
Na dezena de recomendações feitas, quase metade recaem na saúde mental. Seja criando mecanismo de apoio psicológico às crianças e jovens no meio escolar "não de uma forma formal/institucional", seja reforçando a capacidade de resposta do SNS e as equipas nas escolas para uma "deteção precoce" e "garantir uma intervenção personalizada".
Ouvir e estudar
Mais estudos de caráter qualitativo, ouvindo os "profissionais que interagem com as crianças". E ouvir, acima de tudo, as crianças. Fazendo-as "participar na vida pública, nas decisões que as afetam diretamente".
Riscos do digital
Inundadas de tecnologias, absorvidas pelo digital nos confinamentos, importa "promover a informação e a sensibilização para os potenciais riscos nocivos". Evitando o ensino online e promovendo, ainda, a recuperação das aprendizagens. Do tempo? Recuperá-lo, fazendo "reset", apostando "nos afetos, no contacto físico, na presença, nas emoções".
44 grupos
Foram realizados 44 grupos focais e duas entrevistas coletivas abrangendo um total de 269 crianças (135 do sexo masculino e 134 do feminino) entre os 6 e 12 anos. Assinam o estudo Cátia Santos, Elizabeth Santos, Fátima Veiga, Paula Cruz e Teresa Dias.