A covid-19 mudou a forma como nos movimentamos e expôs a falta de condições habitacionais com que se debatem milhares de pessoas. Arquitetos e economistas consideram que fundos da "bazuca" europeia deveriam ser usados na construção de espaço público e edificado de qualidade.
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Vinte e três anos depois da requalificação urbanística de uma zona industrial degradada de Lisboa, para acolher a Expo"98, a forma como se olha para o espaço público é muito diferente. Hoje, quem pensa as metrópoles acredita que a criação de uma cidade mais sustentável passará pela aposta na qualidade do espaço público, construção de habitações menos precárias, e mais investimento nos transportes públicos. Só assim se poderão resolver outros problemas, como a utilização excessiva de carro nos centros urbanos, situações que ficaram mais à vista com a pandemia e os confinamentos, que dela decorreram.
Estas foram algumas das ideias destacadas na mesa redonda "As cidades em Portugal, entre a Expo"98 e o Plano de Recuperação para a Europa", debate que, recentemente, abriu uma conferência organizada pelo ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa. Não deixando de reconhecer a importância que a Expo"98 teve na regeneração da capital, o ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, considerou que "não é tempo de andarmos a explorar novos projetos urbanos como este, mas de densificar as cidades com muita qualidade do espaço público".
"Em vez de se desenharem projetos de cidades circulares, é preciso apostar na qualidade do espaço público e na capacidade que este tem de poder suportar inúmeras transformações sociais ao longo do tempo", explicou. Uma mudança das cidades que, para o economista e professor do ISCTE Ricardo Paes Mamede, só faz sentido se acompanhada por uma forte aposta na habitação. O economista considera que haver casas a preços comportáveis é "fundamental para o desenvolvimento das cidades" e deve ser uma "prioridade dos fundos europeus".
A experiência de viver em casas onde não há condições para se estar confinado, durante a pandemia, foi muito dolorosa para centenas de milhares de pessoas
"A experiência de viver em casas onde não há condições para se estar confinado, durante a pandemia, foi muito dolorosa para centenas de milhares de pessoas. Vivemos até agora uma enorme invisibilidade", alertou. Paes Mamede acredita que a melhoria da qualidade de vida nas cidades poderá passar também pelo encurtamento das distâncias entre trabalho e casa, o que só será possível com melhor oferta habitacional e a "criação de uma rede de transportes públicos abrangente e funcional".
A precariedade das construções e "a ausência total de planeamento" do edificado foram também apontadas pelo presidente da Ordem dos Arquitetos, Gonçalo Byrne, como aspetos a melhorar. "Há um boom de construção gerado numas coroas periféricas das cidades, muitas vezes deslocando a população que estava nos centros para outros sítios. As construções do ponto de vista energético são desastrosas", reparou.
A Expo criou uma fortíssima nova centralidade urbana em Lisboa, com habitação de classe média alta, que compete com a centralidade histórica da cidade
Byrne deu a Expo"98 como exemplo do que de melhor foi feito na capital. Para o arquiteto a exposição mundial permitiu o nascimento de "um polo urbano e do território com mais alta mobilidade de todo o país, com uma verdadeira sustentabilidade". "A Expo criou uma fortíssima nova centralidade urbana em Lisboa, com habitação de classe média alta, que compete com a centralidade histórica da cidade. Criaram-se grandes áreas de escritórios e equipamentos, a serem usados 24 horas", elogiou, sublinhando que foi em 1998 que também começa a surgir "uma atração muito grande por Lisboa como destino turístico".
Sem turistas e com milhares de pessoas em regime de teletrabalho, por causa da pandemia, as maiores cidades do país enfrentam agora novos desafios. Há mais pessoas a andarem de bicicleta e a pé ou a frequentarem jardins e espaços ao ar livre, mas também há quem tenha trocado os transportes públicos por carro. É preciso esperar para perceber se os hábitos estão para ficar.
O "bom exemplo" do porto de Leixões
"Estávamos a assistir ao crescimento da mobilidade suave nas cidades, mas a pandemia criou medo de se andar de transportes públicos. As ciclovias começaram a ser mais utilizadas por causa da entrega ao domicílio e houve pessoas que adquiriram carro por causa do receio dos transportes. É difícil antecipar se estes hábitos se vão manter ou regredir", comentou Paes Mamede.
O ministro do Ambiente, em resposta às intervenções, disse que as verbas da "bazuca" vão chegar para "aumentar a oferta habitacional e intervir na renovação da cidade para criar espaços para habitação acessível". Matos Fernandes lembrou ainda a importância da renovação de infraestruturas e deu como exemplo "a reinvenção do Porto de Leixões", com a construção do terminal de cruzeiros. "Contribuiu para a apropriação dos portuenses e de quem vive em Matosinhos desse porto como sendo deles", concluiu.