Neste verão, menos 773 mil trabalhadores fizeram horários ao serão, à noite, ao sábado e ao domingo. Há empresas a descontar folgas e exigir horas a mais por terem de encerrar mais cedo durante o fim de semana.
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A pandemia inverteu uma década de crescimento do número de trabalhadores que fazem turnos. Neste verão, menos 773 mil pessoas trabalharam em horários considerados fora do expediente. O arrefecimento da economia, o layoff e o desemprego explicarão o fenómeno que poderá aumentar com as restrições do atual estado de emergência.
No último verão, e em comparação com o homólogo do ano passado, o número total de trabalhadores diminuiu 3%, revelam os dados do Instituto Nacional de Estatística, recolhidos para o JN. Já o trabalho por turnos diminuiu 7,6%, depois de ter aumentado 31% entre 2011 e o ano passado. É ainda maior a descida dos que trabalharam ao serão (20,6%), à noite (27,6%), ao sábado (13,5%) e ao domingo (14%). Como explicar estes valores, num ano em que as horas extraordinárias batem recordes nalguns setores, como na Saúde, e o teletrabalho nem sempre cumpre horários?
Menos produção
"O trabalho por turnos e em horas extraordinárias está associado a um aumento de atividade. Se a economia arrefeceu, é natural que diminua esse tipo de horários", interpretou José Reis. O coordenador do Observatório sobre Crises e Alternativas sublinhou que a pandemia pode alterar o panorama laboral "para pior, criando mais "desimprego"".
A quebra do volume de negócios e das encomendas explica a "diminuição da necessidade de mais horas de trabalho", adiantou o presidente da Associação Empresarial de Portugal (AEP). Luís Miguel Ribeiro rejeita a possibilidade de as empresas poderem estar a poupar nos custos acrescidos do trabalho extra.
Trabalhar mais
Quanto ao ligeiro aumento (2%) dos que não trabalharam num daqueles horários, o sociólogo do trabalho Hermes Costa duvida que tal se deva à criação de emprego com melhores condições.
"Não é expectável que as condições de trabalho em geral tenham melhorado. A redução do trabalho ao fim de semana e, sobretudo, ao serão e de noite talvez se possa explicar por um misto de razões sanitárias e económicas", analisou, notando que "redução no trabalho noturno pode significar também uma redução de compromissos salariais por parte das empresas".
Algo semelhante sucedeu recentemente, no comércio, obrigado a fechar portas às 13 horas aos fim de semana e feriados e às 15 nas vésperas de feriados. "Há empresas a descontar as horas em que não podem ter porta aberta, aos sábados, domingos e feriados (menos 16 horas), nas folgas dos trabalhadores, sobrecarregando-os ainda com horas que têm de dar a mais durante a semana", denunciouMarisa Ribeiro, dirigente do CESP - Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços. O sindicato pediu intervenção da Autoridade para as Condições no Trabalho, mas "não recebeu resposta, não houve fiscalização".
Em contrapartida, há o "bom exemplo" das empresas que "anteciparam os turnos da tarde para a manhã, reforçando as lojas com pessoal para atender a maior afluência" ou as que "mantiveram os turnos e colocaram os trabalhadores a fazer reposição, mesmo após a porta fechada".
Pandemia agrava risco de se criar mais "desimprego"
A crise económica nascida da pandemia de covid-19 é um risco para os trabalhadores portugueses e pode vir a criar mais "desimprego". O conceito pertence a três investigadores do Observatório das Crises e Alternativas do Centro de Estudos Sociais e é sinónimo de mais emprego precário, de menos direitos para os trabalhadores e de agravamento da pobreza. Na próxima semana, o Observatório apresenta um plano de recuperação da economia alternativo ao do Governo.
"Nos últimos anos, têm vindo a aumentar as novas formas de relacionamento contratual entre empregadores e trabalhadores, com desmaterialização de contratos e menos proteção do emprego, gerando um desemprego latente a que decidimos chamar "desimprego"", resumiu João Ramos de Almeida. Com Ana Alves da Silva e José Castro Caldas, o economista assina o capítulo "Na periferia do emprego: o "desimprego" e o imperativo da proteção sociolaboral", que consta do 5.º relatório do Observatório, que será lançado na próxima terça-feira, recordou que a última crise teve efeito semelhante na sociedade portuguesa.
"Foi durante a chamada crise da troika que se alteraram leis que levaram à perda de direitos no emprego e de benefícios no desemprego, tornando mais fácil despedir, desvalorizaram os sindicatos e a contratação coletiva. Esta crise cria o risco de agravamento das condições, porque o aumento do desemprego pressiona e convence o trabalhador a aceitar condições contratuais mais frágeis", explicou. "Ficou provado, com as medidas tomadas no tempo da troika, que a diminuição da massa salarial não aumentou a competitividade das empresas, mas criou um ciclo vicioso que produz baixo valor acrescentado e não estimula a economia", acrescentou.
O trabalho é, precisamente, uma das vulnerabilidades do país referida no relatório que o Observatório das Crises e Alternativas apresentará na próxima semana. "Como reorganizar um país vulnerável" sugere uma abordagem inovadora à recuperação económica, centrada "nas pessoas que fazem das empresas grandes e não ao contrário".
Horários cortados, trabalho a dobrar
Mais pessoal para atender
O comércio é o mais afetado pelas medidas que obrigam a fechar mais cedo aos fins de semana e feriados. As "boas empresas reforçaram os turnos da manhã com o pessoal da tarde para lidar com a maior afluência e todos foram mais cedo para casa", notou a dirigente do CESP.
Reposição de porta fechada
Outras empresas da grande distribuição optaram por "manter os turnos da tarde, mesmo de portas fechadas, colocando os trabalhadores em tarefas de reposição".
Trabalhador perde folgas
Entre os "maus exemplos", há empresas a "descontar as horas que são obrigadas a fechar nas folgas dos trabalhadores, obrigando-os a trabalhar mais durante a semana".
Teletrabalho sem interrupção
Os serviços e o pessoal administrativo do comércio e da indústria estão, geralmente, em teletrabalho. "Seria difícil alterar [formalmente] os horários do teletrabalho porque seria preciso proteger o agregado familiar do trabalhador", sublinha o sociólogo Hermes Costa.
Laboração contínua
Na indústria, a regra é a laboração contínua e, por isso, os turnos não foram afetados pelas restrições. Ainda que, explicou José Eduardo Andrade, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura e das Indústrias de Alimentação, "haja empresas a alegar quebras nas vendas para diminuir pessoal, quando os turnos se mantêm e não chegam para manter a produção".