O recolher obrigatório previsto pelo estado de emergência mergulhou as ruas no vazio total. Quem trabalha durante as chamadas "horas mortas" fala em situações com que jamais contou deparar-se. E há quem tenha alterado por completo as rotinas para evitar horários que nada trazem de benéfico.
Corpo do artigo
São 23 horas em ponto e Wagner Ribeiro, brasileiro de 39 anos, não pensa duas vezes. Desliga as aplicações da Uber, Bolt e Free Now que lhe dão o ganha-pão diário e faz inversão de marcha para regressar a casa. Trabalhar durante o período de recolher obrigatório não vale a pena. "Não compensa, é perda de tempo e de dinheiro", desabafa, enquanto observa as ruas vazias da Baixa do Porto.
"Dantes, fazia cerca de 25 viagens durante toda a noite. Desde que a medida entrou em vigor é quase milagre fazer uma", descreve o motorista TVDE, há um ano e três meses em Portugal. "Só vale a pena se cair uma viagem com um trajeto grande. Mas isso é jogar com a sorte, por isso desisti e passei a trabalhar apenas de dia", conta o motorista de TVDE. "Ainda por cima, eu e os meus colegas não temos qualquer tipo de apoio do Governo. Nem uma associação ou sindicato", lamenta.
O silêncio tomou conta dos concelhos abrangidos pelo período de recolher obrigatório previsto pelo estado de emergência decretado pelo presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, depois de decidido pelo Governo e devidamente aprovado pelo Parlamento. Das 23 horas às cinco da madrugada, de segunda a sexta-feira, e das 13 às 5 horas, aos fins de semana, é expressamente proibido sair à rua, a não ser em casos excecionais, como deslocações urgentes ou motivos de trabalho. Tudo para tentar travar os números terríveis da segunda vaga da covid-19. Mas há quem tenha nesse período o horário normal, ou parte dele, do período laboral e assim não possa evitar o contacto com um cenário diferente: despido de pessoas, sem ponta de ruído, misterioso até.
"Antes da pandemia, às vezes tinha de falar mais alto para os meus colegas me ouvirem, por causa do barulho nas ruas. Agora, estamos nos Restauradores e ouvimos um carro a passar no Marquês
Marco Conceição, 49 anos, há 15 a trabalhar na limpeza urbana em Lisboa, diz que, se não fosse a sua larga experiência, acharia que havia adormecido e acordado numa cidade diferente, onde este seria "o normal". "Antes da pandemia, às vezes tinha de falar mais alto para os meus colegas me ouvirem, por causa do barulho nas ruas. Agora, estamos nos Restauradores e ouvimos um carro a passar no Marquês [o extremo oposto da Avenida da Liberdade]", descreve.
Ao serviço da equipa de limpeza urbana da Junta de Freguesia de Santo António, Marco confessa que o recolhimento obrigatório "deixa uma sensação de vazio" e que "é duro suportar o som do silêncio" de uma cidade que até março fervilhava 24 horas por dia. "Agora não temos obstáculos, não é preciso mandar desviar as pessoas para recolhermos os objetos, mas só queria de volta a normalidade e que Lisboa voltasse a ser o que era", remata.
Qualquer barulho puxa atenção
Também em Lisboa, Fernando Rodrigues faz das noites calmas destes dias companheira de profissão. É guarda-noturno, atividade que vai rareando país fora e que Fernando exerce pelas bandas de Olivais Sul, da meia-noite às seis da manhã. "Agora, qualquer barulho, por pequeno que seja, chama logo a atenção. Curiosamente, é preciso estar ainda mais atento", revela. Faz os percursos de automóvel, por vezes também a pé. Cerca de um quilómetro em linha reta que palmilha noite fora com atenção redobrada para detetar qualquer sinal que indique uma situação anormal, sobretudo roubos.
"Do que me tenho apercebido, as pessoas têm acatado bem as ordens para não saírem à rua. Apenas me deparei com uma situação de um grupo de adolescentes que circulava na rua durante o horário do recolher obrigatório", descreve. "Fui ter com eles, perguntei-lhes e pedi-lhes que não estivessem na via pública e voltassem para as suas casas", conta.
O experiente guarda-noturno, 35 anos de rondas no currículo, alerta que tanto vazio poderá "fazer subir a criminalidade" em Lisboa, "sobretudo a ligada aos furtos em automóveis." A vantagem é que qualquer situação anómala "tem tendência a ser detetada mais rapidamente do que o habitual" dada a falta de ruído.
Wagner, Marco e Fernando encaixam nos casos de exceção que o estado de emergência contempla. Mesmo assim, diz a lei, quem trabalha durante o recolher obrigatório tem que possuir uma declaração específica para o efeito emitida pela entidade empregadora ou até pelo próprio, no caso de se tratar de um trabalhador por conta própria. Profissionais de saúde, agentes das forças de segurança, militares e inspetores da ASAE são outros profissionais a quem a lei prevê poder circular normalmente nas ruas. De resto, a ordem é para permanecer em casa. E deixar às ruas o privilégio de serem delas próprias, sem ninguém que lhes tome conta das rotinas. Vazias e silenciosas como se nunca tivessem sido de ninguém.