A pandemia de covid-19 reduziu o turismo a quase zero. A tempestade arrastou tudo à sua volta e os guias não foram exceção. Sem trabalho nem rendimentos, atravessam um período negro. Depois da concorrência antiga de "colegas" não certificados, confrontam-se agora com o pior dos cenários.
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O ano de 2020 começou otimista. As reservas multiplicavam-se, os estrangeiros continuavam a assegurar boa parte dos programas de viagens. Tudo indicava que o turismo continuaria forte e seria fonte de emprego garantido como nos anos mais recentes. Mas tudo se desmoronou quando, em março, surgiram os sinais evidentes de que Portugal não escaparia à pandemia de covid-19 e os cancelamentos começaram a surgir em catadupa.
Entre os vários agentes turísticos instalou-se o pânico, os guias intérpretes não escaparam à regra e acabaram arrastados pela corrente. Como a maioria trabalha em regime independente sem estar ligado apenas a uma empresa mas às que lhe vão oferecendo trabalho, perderam tudo. Tudo menos a vontade de continuar a lutar por dias melhores.
"Foi a desgraça completa", resume Cristina Leal, presidente da Associação Portuguesa dos Guias-Intérpretes e Correios de Turismo-AGIC Portugal. "Segundo inquéritos realizados junto dos nossos associados, 98% foram afetados pela onda de cancelamentos e ficaram sem trabalho", explica. Quer isto dizer que dos cerca de 1200 membros da AGIC Portugal, todos eles guias certificados, contam-se por pouco mais do que os dedos das mãos aqueles que conseguem ver garantida qualquer fonte mensal de rendimento razoável.
Já há quem recorra ao Banco Alimentar
Ponte de ligação entre agências de viagens e outras empresas e os turistas que visitam Portugal, os guias passaram, num abrir e fechar de olhos, a confrontar-se com uma situação de desespero. Sem meios de trabalho, procuraram apoios que lhes permitiam assegurar uma vida digna, mas encontraram dificuldades várias.
"A Segurança Social apenas assegura valores que vão dos 400 aos 600 euros, dependendo dos rendimentos obtidos em 2019", explica Cristina Leal. "Houve imensos pedidos de apoio indeferidos, o que levou a que muitos de nós tenham recorrido ao pé de meia que antes conseguiram amealhar. Há casos dramáticos de colegas que estão a receber ajuda do Banco Alimentar Contra a Fome e da Santa Casa da Misericórdia", denuncia. E, depois, há quem trabalhe no meio tendo como base uma empresa unipessoal e "que não conta com qualquer tipo de apoio."
Bárbara Levy tem 42 anos e é guia-intérprete com base no Porto. Perdeu a carteira de clientes que tinha para 2020, viu desmoronar-se a base de trabalho, não sabe quando a realidade irá permitir que regresse. "Ainda por cima, muito do turismo de cidade é protagonizado, entre outros, por cidadãos americanos e britânicos, ou seja de países onde a pandemia teve efeitos gravíssimos. Além de que boa parte são turistas de uma faixa etária acima dos 60 anos, logo de um grupo de risco", explica.
O medo existe e é normal. O importante é que as pessoas entendam que todas as medidas sanitárias estão a ser tomadas
A empresa de animação turística que gere viu a sua atividade interrompida sem retoma no tempo previsível. "Os serviços que tinha programados, e já os tinha praticamente assegurados até ao último trimestre do ano, foram cancelados", descreve Bárbara.
Susana Brás, 42 anos e guia-intérprete há mais de 20, nunca imaginou viver uma situação assim, apesar de conhecer a instabilidade que a profissão acarreta. "É um trabalho sazonal e sabemos todos que temos de conviver com essa realidade. No entanto, o que agora se verifica é, de facto, uma situação anormal porque repentinamente os turistas deixaram de poder vir, por razões sanitárias, a Portugal", desabafa. "Grandes contratos foram cancelados, os mais pequenos também, e a perspetiva é que a situação retome a normalidade apenas na segunda metade do próximo ano ou até apenas em 2022, pelo menos é essa a perspetiva dos operadores", avança.
Tomaz Eisele Menezes, 48 anos e profissional desde 2013, viu igualmente a vida virada de pernas para o ar. No entanto, diz que, apesar de o panorama atual ser tudo menos otimista, há condições para o turismo ser retomado, mesmo com todas as condicionantes provocadas pelos cuidados sanitários. "Os cruzeiros, onde também exercemos a função de guias, estão lentamente a regressar à atividade. São realizados testes logo no aeroporto e depois à chegada dos turistas aos barcos. Todas as condições de desinfeção estão asseguradas e pode dizer-se que os riscos para a saúde são praticamente nulos", aponta. "Mas o medo existe e é normal. O importante é que as pessoas entendam que todas as medidas sanitárias estão a ser tomadas", diz.
Há muitas pessoas a fazerem-se passar por guias sem estarem devidamente certificadas
O descalabro da atividade durante o presente ano de 2020 é uma dor de cabeça aguda que veio juntar-se a uma outra que se prolonga desde 2011, quando a função foi liberalizada, o que menorizou e desprotegeu o papel dos guias-intérpretes.
"No fundo, qualquer pessoa pode ser guia sem que tenha as mínimas condições para tal ou que se veja obrigada a realizar as contribuições para o Estado a que estamos obrigados", denuncia Cristina Leal. A presidente da AGIC Portugal lembra que para aceder à profissão é necessária "licenciatura e posterior aprovação num exame de acesso", tal qual como acontece numa ordem profissional. A questão é que "há muitas pessoas a fazerem-se passar por guias sem estarem devidamente certificadas." Quantas é "impossível contabilizar" dada a profusão de casos verificada, sobretudo, em Lisboa e no Porto ao longo da última década.
"É um desrespeito pela nossa profissão e atividade", considera, por sua vez, Tomaz Eisele Menezes, que aponta ainda para o facto de os guias não oficiais não cumprirem o mínimo exigível. "Há um limite do número de pessoas com que os guias podem trabalhar atualmente, por uma questão de segurança sanitária, e quem anda por Lisboa e Porto facilmente verifica que tal não é respeitado", aponta.
Por isso, os guias-intérpretes oficiais falam em "concorrência desleal". E pedem que sejam tomadas "medidas urgentes" para proteger a profissão.