Francisco Castro Rego, investigador e líder do antigo Observatório Técnico Independente, na entrevista JN/TSF deste domingo.
Corpo do artigo
Catástrofe após catástrofe, revisitamos os mesmos problemas e percebemos que o diagnóstico sobre a floresta e os incêndios está feito, mas as soluções nunca são implantadas. Francisco Castro Rego, que foi diretor-geral dos Recursos Florestais e liderou o Observatório Técnico Independente no Parlamento, considera que a principal causa deste círculo vicioso está na falta de continuidade das políticas e de visão estratégica concertada entre os partidos.
Em 2022, lamentou que o Observatório fosse extinto, dando ideia de que os problemas dos incêndios rurais estavam resolvidos. Depois do que viu e ouviu na última semana, quer sublinhar o que não foi resolvido?
É sempre um pouco triste constatar que os problemas não estão resolvidos. De facto, quando a temperatura, a humidade e o vento são mais simpáticos para a floresta, as pessoas tendem a esquecer. Quando a meteorologia se conjuga, destapa-se uma espécie de um véu que se põe por cima da floresta e os problemas voltam a aparecer. Na Comissão Técnica Independente e no Observatório, tivemos a oportunidade de olhar para muitas das questões pendentes, fizemos um conjunto de propostas, mas a nossa constatação é que muito pouco mudou e é pena ter de se revisitar várias vezes o mesmo problema. Vamos de catástrofe em catástrofe, esquecendo e depois revisitando, e o que é preciso é ter uma linha firme desde o início.
Mas daquilo que viu, o que é que de mais óbvio falhou?
As imagens que vimos este ano foram iguais às de 2017, de 2003, de 2005, infelizmente as imagens são muito parecidas. E o que é que se vê? Vê-se outra vez uma floresta desordenada, vê-se que quando as condições são tão extremas, e quando o dispositivo se foca na defesa das pessoas e bens, tem mais dificuldade de se desdobrar no combate à própria propagação do incêndio. O contexto geral é o problema da floresta, da acumulação de combustíveis. Quando as condições meteorológicas aparecem, o problema está lá. Nós propusemos um conjunto de iniciativas. Uma primeira era olhar para a composição da floresta, tentar que o ordenamento do território fosse mais musculado e que as metas dos planos regionais de ordenamento florestal fossem implementadas.
O relatório da Comissão Técnica Independente em 2017, a propósito do discurso muito comum dos portugueses sobre os incendiários e o fogo posto, diz que é “mais cómodo culpar criminosos desconhecidos do que assumir a nossa responsabilidade e evitar comportamentos de risco”. Foi isso que fez esta semana o primeiro-ministro, evitar as suas próprias responsabilidades numa intervenção carregada de críticas aos “interesses que sobrevoam” os incêndios?
A pergunta é de facto muito pertinente. Mas esta culpabilização de desconhecidos é muito comum nos vários ciclos a que tenho assistido. É evidente que tem de se fazer mais trabalho na repressão destes comportamentos criminosos que existem, com certeza, mas o contexto é que é mais problemático. Portugal tem felizmente uma tradição e uma prática de muito boa investigação no crime florestal. A Polícia Judiciária, com a GNR, que integrou os guardas-florestais, tem um trabalho muito significativo, reconhecido internacionalmente como de grande competência. Muitas vezes, os recursos não são os suficientes, mas a competência está lá e tem de ser desenvolvida. A tentativa ou a ideia de criação de novos grupos, novas entidades... Temos é de pôr as entidades que já sabem e que já têm as competências a trabalhar.
Considera necessário endurecer as penas?
É natural, é humano dizer “vamos ver quem é o culpado e vamos aprofundar as penas”. Acontece muitas vezes nestas situações que se não houver flagrante delito é muito difícil provar a causa da ocorrência. O nosso sistema protege alguém que é suspeito, quando não há evidência suficiente para prender. Nesses casos, quando há pessoas que são sinalizadas como suspeitas, poderá haver talvez um maior acompanhamento para prevenir possíveis acontecimentos em anos sucessivos.
Um fogo começa maioritariamente por intervenção humana, seja mão criminosa ou negligência. Mas há ignições sem essa causa humana, com determinadas condições climatéricas e de desordenamento florestal?
Mais de 95% dos casos verificados são de origem humana. Muitos por negligência, alguns por dolo, mas naturalmente os raios constituem uma causa importante, que aconteceu já anteriormente e por vezes com várias ignições quase simultâneas.
E a crise climática agrava?
A crise climática agrava claramente. A coincidência de situações de secura, de ventos fortes, etc., vai com certeza potenciar este problema e os incêndios contribuem também para este agravamento, porque a energia que se liberta com os incêndios aquece a atmosfera e esse aquecimento é muito significativo.
Há muitas resistências ao fogo controlado. Considera que o deveríamos usar mais na gestão da floresta?
Claramente. Todos nos queixamos muito do custo da limpeza da floresta. O fogo controlado é a forma mais barata, se for bem utilizado, para fazer esse controlo. E não é nada de novo, Portugal foi pioneiro na utilização do fogo controlado.
Os pastores faziam-no.
E desde sempre, não é? Desde que seja bem feito, na altura certa, só pode ter efeitos muito benéficos, gerindo o combustível nessas áreas, até em pinhal. O fogo pode ter este aspeto benéfico, pode funcionar como uma espécie de vacina para o próprio incêndio, inocula-se um pouco de fogo, fazendo fogo no inverno, e consegue-se com muita facilidade gerir aquela manta morta que se acumula.
O ritmo de despovoamento no Interior não é por si só um gerador de problemas insuperáveis? Na prática, os territórios estão abandonados.
Exatamente, é um dos problemas de fundo. A população naqueles territórios geria o combustível, primeiro para a energia, depois para as camas do gado, para a fertilização dos solos agrícolas, havia um certo equilíbrio que estava instalado e desaparece.
O vazio foi ocupado pela natureza?
A natureza tem horror ao vazio, claramente esse vazio foi ocupado. Aquilo que importa agora é criar soluções modernas que permitam preencher esse vazio. Uma das soluções que propusemos com muita força era a utilização da biomassa para a energia, e isso não está a ser feito. As centrais de biomassa eram uma solução. Acabaram por não acontecer porque provavelmente estavam sobredimensionadas, mas em muitos casos na Europa Central, no Sul de França, há pequenas utilizações energéticas da biomassa a nível municipal para aquecimento de lares, de piscinas, etc. Precisamos de encontrar essas soluções mais inteligentes, que já não são novas mas continuam a ser inteligentes, para resolver este problema e para o minimizar.
A questão das espécies continua a ser um problema. Fomos excessivamente permissivos na cultura do eucalipto?
Considero que fomos excessivamente permissivos, sim, por falta de ordenamento, que deveria apontar para equilíbrios na composição da floresta.
É uma das áreas em que pode haver nova legislação ou novas medidas?
Deveria primeiro haver uma consensualização de por onde deveríamos ir em termos de paisagem, nas várias regiões. Na Estratégia Nacional para as Florestas, apontámos para zonas mais produtivas, zonas mais multifuncionais, e o país é muito diverso nesse aspeto. As regiões têm equilíbrios diferentes nesta composição. Deveríamos ter uma floresta mais equilibrada, com as folhosas autóctones. Temos um défice muito grande de madeiras nobres, de carvalho, de castanheiro, que importamos, e contribuem para uma quebra da continuidade do combustível.
A nossa floresta caracteriza-se pela pequena propriedade e há muito se discute a falta de cadastro. O projeto do Balcão Único do Prédio tem sido positivo ou é demasiado lento?
Julgo que tem contribuído de uma maneira significativa para um melhor conhecimento, mas também nesse aspeto perdemos oportunidades que depois são difíceis de recuperar. Lembro-me da constituição das ZIF (zonas de intervenção florestal), com um trabalho magnífico de procurar os proprietários e de recolha de informação, os agrupamentos de baldios... Esses trabalhos têm tido sempre uma dificuldade muito grande de continuidade.
O que é que explica essa dificuldade? É uma questão de verbas?
Eu diria que não é uma questão de montantes de apoios, é uma questão de regularidade e de continuidade dos sistemas de apoio. Por exemplo, em relação às ZIF, houve muito pouca continuidade no apoio. A ideia era que elas próprias contribuíssem para a informação necessária a um cadastro mais rigoroso e mais completo. Nós estamos sempre a trabalhar em protocadastros ou cadastros experimentais e nunca se chega ao finalmente. Se pusermos os incentivos económicos no sítio certo, o país é muito dinâmico e reage muito bem aos incentivos económicos. Quando a economia é atrativa, as pessoas reagem e têm iniciativa.
Qual a sua posição em relação a medidas mais agressivas de intervenção do poder público, como a de fazer reverter para o Estado terrenos abandonados sem proprietário identificado?
É uma tentativa de resolver o problema da maneira mais complicada. As ZIF já tinham uma legislação que lhes permitia, nas áreas sob a sua alçada, intervir em trabalhos de infraestruturação e de proteção da própria floresta. Há possibilidades de intervir independentemente da resolução do problema da propriedade.
Mas se o Estado assume que pode intervir e limpar e entrega competências à Câmara, as autarquias dizem que não têm dinheiro…
E isso tem acontecido, tem havido atribuição de competências que depois não têm os tais envelopes financeiros e julgo que a questão é tentar criar alguma economia associada a essas transferências de competências.
Isto é agravado pelo facto de as competências nesta matéria serem repartidas entre vários ministérios?
Julgo que isso não é fundamental. O fundamental é que, de facto, falta uma visão estratégica global e que seja consistente e coerente entre os vários partidos, porque eu julgo que há um grande consenso nacional, que é visível nesta altura dos incêndios, de que devemos privilegiar a floresta.
Já conseguimos investir mais em prevenção do que em combate? E o investimento que está a ser feito em prevenção está a ser eficaz ou não?
Essa divisão da prevenção e do combate é muitas vezes um pouco artificial. Por vezes, põem-se na prevenção coisas que não sei bem se o serão. A ideia da Comissão Técnica Independente ao propor a criação da AGIF, a Agência de Gestão Integrada dos Fogos Rurais, era exatamente tentar associar a prevenção ao combate.
Isso foi alcançado?
Julgo que não foi, a nossa expectativa era bastante maior.
Mas por falta de ambição, por falta de organização, por falta de objetivos?
Nós temos no sistema dos incêndios muitas entidades, e todas as entidades têm de ser de algum modo racionalizadas e trabalhadas em conjunto. Propusemos, por exemplo, que houvesse uma formação dos agentes que fosse transversal, para que quem faça o combate perceba também quais são as limitações da prevenção e vice-versa.
Este ano tivemos mais uma vez perda de vidas. Estamos a falhar no capítulo da proteção pessoal?
Houve programas bastante interessantes, como as aldeias seguras e pessoas seguras, etc.
Esse programa tem avançado muito aquém do que eram os objetivos.
Tem avançado aquém, mas mais uma vez não é preciso muita coisa nova. O que temos de fazer é generalizar estas práticas ao país inteiro, porque não sabemos quais são as áreas em que o fogo pode voltar a aparecer.