Sofia, Ana, Hugo e Telma. Quatro portugueses na engrenagem que faz o Parlamento Europeu funcionar. Em comum, terem deixado o país para trabalhar em Bruxelas e sentirem um orgulho desmedido num projeto que acreditam ser para o bem comum de 27 nações.
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“Somos europeístas convictos. Não que seja um projeto perfeito. Mas o facto de acreditarmos no que fazemos e no impacto que isto tem na vida dos cidadãos é importante e muito gratificante”. Quem o diz é Ana Costa Martins, numa sala reservada que, esta noite, serve de aposento de Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, enquanto aguarda pelos resultados eleitorais.
Trabalha aqui há mais de 11 anos. Começou no Departamento de Segurança, apesar de ter formação em Comunicação Política na Europa, e hoje é conselheira do Diretor para os Meios de Comunicação, com um papel fundamental nestas eleições. Quando esta noite o edifício Spaak, onde está o hemiciclo de Bruxelas, ficar repleto de gente, os jornalistas, técnicos e líderes políticos terão de agradecer à conimbricense ter sido uma das peças-chave da organização, ao longo de quase um ano de trabalho em rede entre departamentos.
Foram “dias e noites” de esforço, para uma produção quase hollywoodesca de divulgação de resultados, e ainda para garantir condições de trabalho e acesso às informações para todos. “É um trabalho a muitas mãos. E é invisível, não é? Quer dizer, o resultado tangível são os ecrãs e todas as luzes, etc. E toda a cena é impressionante do ponto de vista técnico”.
Com Ana está Hugo Soares, ex-agente da PSP, que passou pela Polícia das Nações Unidas antes de chegar a Bruxelas. Ambientes como Timor, Sudão e República Centro-Africana eram cenários pouco convidativos para a família, e foi na capital belga que encontrou o equilíbrio entre a segurança e o ambiente multicultural que adora. Os dois começaram mais ou menos ao mesmo tempo no Parlamento, mas os caminhos divergiram e agora Hugo está no Protocolo, uma área que também conhecia bem.
“Quando temos uma visita, preparamos o mais mínimo detalhe. A chegada ao aeroporto. Quem vai buscar. Como se deve dirigir à pessoa. A conversa a ter durante a viagem. Onde vamos, o que vai comer. Dias e dias e às vezes semanas a preparar o ‘déroulée’ com páginas e com páginas”, um trabalho minucioso, que esbarra por vezes em entidades mais repentistas. E há um português que adora pregar partidas ao protocolo: “o nosso presidente Marcelo é especialista nestas coisas”, confidencia entre sorrisos.
É a falar que nos entendemos
Para que 27 países sejam uma união, é preciso que todos se entendam, mesmo que não falem a mesma língua. E é aí que entra Sofia Castanheira, intérprete de inglês, francês, espanhol, italiano e polaco para português.
“O polaco foi um pouco antes da adesão, de 2004. Havia falta de colegas com essas línguas e pediram-nos que preparássemos línguas novas. E eu escolhi o polaco”, explica quando franzimos o olho a um idioma pouco habitual. E se de início foi uma necessidade, “depois tornou-se um prazer pessoal estudar a língua, a cultura e o país”, conta-nos a experiente intérprete, que há 24 anos trabalha em plenários, conferências e até mesmo reuniões confidenciais, em que o que foi dito só lhe sai da boca para o microfone, naquele preciso momento.
E o que é o trabalho de interpretação? “Temos que interpretar conceitos e unidades de sentido. Se interpretasse tudo palavra a palavra, seria uma coisa sem nexo”, explica, lembrando a intervenção de um deputado irlandês sobre desperdício alimentar. “Ele dizia ‘a minha mãe utilizava os restos para fazer’ e disse o nome de um prato irlandês. Não faria sentido para um português e transformei rapidamente em ‘a minha mãe utilizava as batatinhas e a carne para fazer um empadão. Não se deitava nada fora’ ”. Imperioso é nunca bloquear. “Não podemos, mas há todo um trabalho de preparação”, para ajudar. “Geralmente sabemos onde vamos trabalhar”, para que os dossiês possam ser estudados. Apesar de “gratificante”, o trabalho divide-se em períodos de 30 minutos, “porque a concentração exigida é muito grande”.
E como tudo no Parlamento tem de estar disponível nas línguas dos 27 países, os intérpretes estão sempre na linha da frente da história, ainda que escondidos do olhar, em pequenas cabines. Muitos momentos poderiam ser referidos, mas o último que marcou Sofia aconteceu nos primeiros dias da guerra na Ucrânia. ”Tivemos uma intervenção em direto do presidente Zelensky, que estava em Kiev, e foi uma coisa muito emotiva. Foi um discurso muito sentido, muito difícil, a falar dos bombardeamentos” e que deixou a equipa de interpretação emocionada.
Um professor que mudou a vida
O primeiro contacto de Telma Martins com as instituições europeias começou com um estágio na Comissão, por influência de um professor de Estudos Europeus, no curso de jornalismo, no Porto, que a fez interessar-se pelo projeto europeu e lhe deu a conhecer a possibilidade de estagiar numa instituição. “Se estou aqui hoje, devo-o a ele”, sublinha. E o que é o ‘aqui’?
Encontramos Telma num sábado de manhã, antes de mais uma reunião e sessão de testes. Faz parte da equipa de “webmaster” dos sites do Parlamento e nos últimos dois anos coordena a preparação técnica do site onde vão ser revelados os resultados eleitorais. Uma tarefa complexa em longos dias de trabalho, que começam às 8, terminam às 19 e continuam em casa, enquanto responde a e-mails.
“A verdade… não tenho vida. O projeto é extremamente interessante, mas exigente. Começamos há mais de dois anos. Não é uma coisa que se faz em dois meses, porque é complexo e envolve muitas partes”, incluindo outros departamentos e entidades externas. E mesmo depois de os resultados começarem a ser divulgados, num primeiro suspiro de alívio, o processo vai continuar, pelo menos, até à reunião plenária constituinte de julho. A seguir, um novo projeto surgirá, talvez mais calmo, para permitir respirar depois de um trabalho tão exigente.
Até lá, os dias de Telma vão continuar a ser preenchidos por jargão técnico, mas também pelos novos termos que teve de ir aprendendo ao mudar de instituição em Bruxelas, depois de vários anos na Comissão, não muito longe do local de trabalho atual. "Quando vim para aqui, há três anos e meio, tive que reaprender o jargão, porque nem todos os termos que utilizávamos na comissão eram aplicáveis. Às vezes ia a reuniões e pensava 'o que é que se está a passar', porque não percebia nada", mas esses tempos já lá vão e depois de 13 anos, já domina "um bocado mais" o microcosmos de Bruxelas, após um percurso que a fez andar entre Portugal e Bélgica, até se fixar de vez.
“Eles lá em Bruxelas”
Difícil ainda é explicar à família e amigos que a entidade “Bruxelas” na verdade não existe. Há a Comissão, o Parlamento, o Conselho... “Eu dizer que trabalho na Comissão ou no Parlamento, para a minha família e amigos lá é a mesma coisa”, confessa Telma. “O meu pai sabe mais porque se registou no ‘unidos.eu’, sem saber que a filha era responsável pelo site, antes de agarrar o projeto da divulgação de resultados, “mas provavelmente o resto da família não sabe exatamente o que faço”.
Trabalhar aqui é também ser um pequeno embaixador das instituições, uma “tarefa hercúlea”, como nos diz Ana Costa Martins. “É um bocado impossível evitar, nas conversas no jantar de Natal, misturar o bacalhau da consoada com algumas explicações para que percebam o que fazemos por aqui”. Mas, no final, “ninguém percebe na mesma”, graceja Hugo Soares.