Desde 2019, menos de 14% dos processos abertos pelo Ministério Público seguiram para acusação. Associações criticam falta de formação das autoridades e pedem rigor nos processos.
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Nos últimos quatro anos, milhares de inquéritos deram entrada no Ministério Público (MP) por crimes de maus-tratos contra animais de companhia. Entre 2019 e 2022, a maioria dos processos foram arquivados, com menos de 14% a seguir para acusação: houve 6657 arquivamentos em 7720 inquéritos abertos. De acordo com a Procuradoria-Geral da República, no ano passado, deram entrada 1803 inquéritos. Durante o mesmo período, houve 85 acusações e 1557 arquivamentos, alguns de processos de anos anteriores. As associações dos direitos dos animais dizem que falta formação às autoridades e aos tribunais. Já o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) refere ser preciso uma lei mais clara.
"O Estado tem demonstrado que não tem mecanismos para aplicar a lei. As poucas vezes em que algum caso transitou em julgado, parecia que era tudo feito com receio", defende Sandra Duarte Cardoso, presidente da associação SOS Animal. Em 2021, houve 101 processos-crimes, 117 arguidos e 78 condenados (a maioria paga multa) nos tribunais de primeira instância, aponta o Ministério da Justiça. Os números têm aumentado desde 2019.
Os maus-tratos a animais de companhia foram criminalizados em 2014, o que levou a uma alteração do Código Penal, prevendo penas de multa e de prisão a quem maltrate ou mate um animal sem motivo legítimo.
Houve três acórdãos do Tribunal Constitucional (TC) a anular sentenças, o que levou o MP a pedir a declaração de inconstitucionalidade da norma. A 21 de janeiro, milhares de pessoas manifestaram-se, em Lisboa, contra a possível inconstitucionalidade da lei. O protesto foi organizado pelo IRA (Intervenção e Resgate Animal). Também a 15 de março, a União Zoófila entregou no Parlamento uma petição assinada por mais de 90 mil pessoas a pedir a criminalização dos maus-tratos a animais.
Influenciados pelo TC
Adão Carvalho, presidente do SMMP, explica que "os arquivamentos podem ser de vária ordem", como as denúncias em que o animal maltratado não é considerado "de companhia", a falta de prova para comprovar quem maltratou e "as dificuldades criadas pelos acórdãos do TC". "Qualquer juiz ou o próprio MP vai ser influenciado pelas decisões do TC". A solução é "o legislador mudar a lei" ou "esperar pela revisão constitucional", diz (ler caixa). Mesmo com o impasse gerado agora pelos acórdãos do Constitucional, Rita Silva, presidente da associação Animal, acredita ser também necessário "agilizar o poder judiciário" sobre o bem-estar animal e não tratá-lo como uma "questão menor". A falta de formação dos vários intervenientes, como polícias, tribunais e autarquias, leva a que não sejam recolhidas "as provas necessárias" para um inquérito e investigação criminal "competentes e rigorosos", diz o IRA.
Adão Carvalho afirma que "se tem investido cada vez mais na formação" dos magistrados e destaca a existência de uma comarca em Setúbal especializada em crimes de maus-tratos a animais de companhia.
Alguns casos de maus-tratos
Março 2019
Lisboa
Um jovem de 26 anos foi condenado a pagar uma multa de 900 euros e ficou proibido de ter animais de estimação durante três anos, após esmagar um hamster com as mãos. Colocou depois o animal dentro de uma caixa.
Fevereiro 2020
Portalegre
O cavaleiro tauromáquico João Moura foi detido para interrogatório por suspeitas de maus-tratos. Dezoito cães em subnutrição foram descobertos pela GNR. Um dos animais morreu, apesar dos cuidados prestados após o resgate.
Maio 2021
Loures
Nove cadáveres de cães de várias raças foram encontrados em arcas congeladoras e armários, dentro de uma casa em Bucelas. Os animais deverão ter morrido à fome e à sede, após terem sido abandonados pelo dono, que foi identificado.
Julho 2022
Ponte de Lima
Após uma denúncia, quatro cães foram encontrados numa habitação: dois estavam mortos (os cadáveres foram autopsiados) e os outros dois estavam num estado de desnutrição extrema. A tutora dos animais foi identificada.
A Justiça tem tido evidentes dificuldades em aplicar a lei
Laurentina Pedroso pede inclusão dos animais na Constituição para serem protegidos.
Após os três acórdãos do Tribunal Constitucional que anularam condenações em casos de crimes de maus-tratos a animais de companhia, a Provedora do Animal reconhece que é importante para o Ministério Público saber como pode atuar daqui para a frente. Laurentina Pedroso propõe um regime contraordenacional com multas pesadas.
O que explica o elevado arquivamento de processos de crimes de maus-tratos sobre animais?
Há diversos intervenientes na recolha da prova, como os médicos veterinários municipais e as autoridades (PSP, GNR e polícias municipais), e vários momentos, que vão desde a instauração do processo à decisão dos tribunais. Muitas vezes, os processos são arquivados porque há falta de prova ou não foi bem recolhida.
Como vê o pedido do Ministério Público a pedir a inconstitucionalidade da norma que protege os animais de companhia?
É um dilema. Os juízes têm dúvidas se a norma pode ser aplicada, por poder ser considerada inconstitucional. O Ministério Público não tem outro dever: quer ver clarificado o que deve fazer. Tem de haver diretrizes. Apesar de haver legislação que protege os animais, pode-se concluir que a Justiça tem tido evidentes dificuldades em aplicá-la.
Qual é a solução para este dilema nos tribunais?
Independentemente de a lei ser declarada inconstitucional ou não, como provedora defendo que os animais devem estar na Constituição. A proteção dos animais é uma tarefa fundamental do Estado. Os animais estão na Constituição em vários países, como na Alemanha e na Itália. Ter os animais na Constituição é declarar que a causa animal e a causa humana andam de mãos dadas. Maltratar os animais é um sinal de que se pode maltratar as pessoas e vice-versa.
É possível mudar algo brevemente para diminuir os arquivamentos?
Um processo de revisão da Constituição demora tempo e não podemos continuar a ter casos arquivados. O que proponho é a criação de um regime contraordenacional, para o imediato, com coimas dissuasoras entre os 300 e os 160 mil euros. A instauração do processo contraordenacional deve estar concentrada numa entidade, à semelhança do que acontece com as multas rodoviárias. O regime não impede que a contraordenação seja julgada também como crime.