O mundo de Isabel desabou a 19 de julho do ano passado. A data sai-lhe assim, de rajada. Foi tudo muito rápido, mas a memória é cruel e os flashes ainda lhe trespassam o coração de mãe. João tinha cinco anos, "era um miúdo perfeitamente saudável", até que uns dias de febre e uma virose, que afinal não era, estragaram tudo. Naquele dia, o maior pesadelo chegou embrulhado numas análises ao sangue: suspeita de doença oncológica. "Nada ficou igual".
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Ainda não tinha digerido o choque inicial, quando, já no Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto, João Ricardo recebeu o diagnóstico de leucemia linfoblástica aguda T, um subtipo menos frequente daquele cancro. Seguiram-se momentos devastadores.
A doença já tinha provocado estragos, um derrame no coração e pulmões, e João foi internado de urgência nos cuidados intensivos do Hospital de S. João. Foram cinco dias dramáticos, a ver as equipas médicas focadas em salvar aquela vida. "Foi tão intenso, que até o João já dizia que queria voltar ao IPO, onde só tinha passado uma noite", conta Isabel, tentando um sorriso numa memória demasiado forte.
Alto risco e sem dador
Mãe de um único filho, Isabel Pereira, 38 anos, engenheira mecânica com a vida profissional em suspenso, está há meses perdida no puzzle da vida. São muitas peças desordenadas num tabuleiro que, ainda, não permite ver à distância. Todos os anos, cerca de 400 famílias passam por uma história de cancro pediátrico e, neste dia da Mãe, fomos conhecer a história de uma "mãe-coragem" que, debaixo da tempestade, mantém o otimismo e a esperança.
Em novembro, o caso de João tornou-se de alto risco, com indicação para transplante de medula óssea e tratamentos "muito agressivos". Ainda não foi possível encontrar um dador compatível, a nível nacional e internacional, e, desde então, João está quase sempre em isolamento.
Sem defesas e vulnerável a qualquer infeção, vive fechado num quarto assético, onde só entra a mãe, o pai e os profissionais de saúde. Todos os dias, dorme com a mãe, acorda com a mãe, brinca com a mãe, faz os tratamentos ao lado da mãe. É a mãe que ajuda a dar a medicação, que põe o termómetro, que leva à casa de banho. Ri-se com a mãe, zanga-se com a mãe, chora com a mãe. "Ser mãe de uma criança com cancro é...", Isabel hesita. "É isto", responde, com um leve encolher de ombros.
Farda laranja, bata azul, touca verde e máscara, como todas as outras mães na mesma condição e com as quais experiencia alegrias e tristezas, Isabel vive "um dia de cada vez", sem "pensar muito no futuro", mas com muita esperança e sonhos. O sonho de levar João a Monza, em Itália, para ver os carros de Fórmula 1, a esperança de vê-lo ingressar na primária em setembro...
Naquele 12.º piso do edifício principal do IPO do Porto, o tempo conta-se em festas. Já passou o Natal, a passagem de ano, o Dia de Reis, o Dia do Pai. Ontem foi o dia mais importante - o sexto aniversário do João - e esperava-se uma festa com bolo e balões. Hoje, é o dia de Isabel e de todas as mães que ali estão e que ajudam a tornar cada momento mais leve.
O abraço na cantina
"É impressionante a quantidade de pessoas boas que existem", lança Isabel, agradecendo o apoio da família, mas também de todos os que trabalham no IPO do Porto, sem exceção. "Houve um dia que estava desesperada, a chorar, e a senhora da cantina viu-me e abraçou-me. É incrível como até a senhora da cantina está, emocionalmente, disponível para abraçar uma mãe desesperada", enfatiza.
A par destes fortes momentos, Isabel aprendeu a apreciar pequenas coisas, antes insignificantes. "Um dia do João sem febre é uma alegria", ri-se. E viver a 15 minutos de distância é uma sorte, garante, explicando que há muitas mães deslocadas que nunca saem.
Se há uns anos, no bulício entre o trabalho e casa, Isabel não tinha tempo para nada, agora há pormenores, como a cor do céu ou das árvores, que ganham nova dimensão. Os stresses do marido sobre o trabalho, afinal, eram nada diante do que têm, agora, em mãos.
Se pudesse puxar a fita do tempo, Isabel alterava, "um bocadinho, as prioridades" para o João ter estado mais consigo e menos na creche nos primeiros anos. "Nestes meses, conheci muito melhor o meu filho e isso foi muito positivo", realça. As peças começam a encaixar. Otimista, a mãe reconstrói o puzzle da vida com esperança. "Vai correr bem".