Portugal está na cauda da Europa em termos de acolhimento familiar. Maioria dos menores espera a definição do seu projeto de vida em instituições.
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Apesar do ligeiro aumento registado nos últimos três anos, o número de crianças e jovens à guarda de Estado que estão em famílias de acolhimento continua a ser residual. Os dados do Instituto de Segurança Social (ISS) cedidos ao JN indicam que, em novembro último, havia 278 crianças colocadas em 211 famílias de acolhimento, o que representa 4,4% do total de 6369 menores que estavam acolhidos em 2021 (últimos dados disponíveis).
Olhando para os números, verifica-se que, depois do mínimo registado em 2019 (com 191 menores em acolhimento familiar), tem-se assistido a uma inversão da curva, mas mais lentamente do que seria desejado. Portugal mantém-se na cauda da Europa, como revela o último relatório da Eurochild e da Unicef, referente a 2021.
Segundo o documento, Malta e Irlanda são, entre os 28 países da União Europeia, aqueles que apresentam maior taxa de crianças em acolhimento familiar, respetivamente, 95 e 91%, seguindo-se a Estónia (83%) e Inglaterra (76%). No polo oposto estavam, por esta ordem, Portugal (2%), Grécia (16%) e Áustria (40%).
Mudança levará tempo
"Somos um país com forte tradição no acolhimento residencial. Durante anos, investimos nesta área e ficámos acomodados a esse modelo", constata Joana Batista, psicóloga e investigadora do ISCTE, que lamenta que Portugal só agora esteja a iniciar "uma mudança de paradigma para a desinstitucionalização". No entanto, adverte, ainda "levará tempo" até que seja possível ter mais crianças em acolhimento familiar do que em instituições.
Isso mesmo foi assumido pela ministra da Segurança Social durante o primeiro encontro nacional sobre acolhimento familiar de crianças e jovens, realizado em novembro. Na ocasião, Ana Mendes Godinho estimou que serão precisos "mais 18 anos" para retirar todas as crianças do acolhimento institucional, tendo em conta as que se mantêm e as que entram no sistema. Pelo que, defendeu, é preciso "acelerar mesmo muito" o foco no acolhimento familiar.
Celina Cláudio, assistente social na Mundos de Vida (associação que, em 2006, criou o primeiro serviço no país especializado nesta resposta), concorda. "É uma medida muito complexa em termos de acompanhamento, mas está demonstrado que o contexto mais favorável ao desenvolvimento da criança é a família", ressalva.
Desenvolver vínculos
A psicóloga Joana Baptista reforça esta ideia, frisando que a investigação "é muito clara ao apontar o acolhimento familiar como a medida que, globalmente, mais protege o desenvolvimento da criança", principalmente em idades mais precoces. "Está provado que os três primeiros anos de vida são o período mais sensível, em que as nossas experiências moldam a arquitetura do cérebro, com amplo impacto no desenvolvimento cognitivo, emocional e comportamental. E, em família, esse desenvolvimento é potenciado."
Isabel Pastor, diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Misericórdia de Lisboa, salienta que, "por muito bom que seja o acompanhamento", no acolhimento residencial há uma "rotatividade de cuidadores", que faz com que a criança "acabe por não se sentir verdadeiramente ligada a ninguém e não crie vínculos". "O acolhimento familiar é mais amigável", reforça Isabel Pastor, revelando que, desde 2019, a Misericórdia de Lisboa já colocou nessa resposta 121 crianças. No caso da Mundos de Vida, foram 180, das quais 40 acabaram por ser adotadas, "ganhando nova família sem precisarem de passar por uma instituição".
Protocolos com várias instituições para tentar reforçar resposta
Com o objetivo de alargar a bolsa de famílias de acolhimento e de "reforçar a cobertura" desta resposta, o Instituto da Segurança Social (ISS) tem, neste momento, acordos de cooperação com 19 instituições, a maioria celebrada nos últimos meses. Entre as ações previstas está a dinamização de campanhas de sensibilização e de "captações regulares" de famílias, bem como o "reforço do apoio técnico permanente e direto" a esses agregados. O ISS prevê ainda a realização de uma campanha nacional de divulgação do acolhimento familiar.
Entre as novas entidades promotoras da medida encontra-se o Centro Social Paroquial Paulo VI, em Leiria, cuja ação nesta área abrange todo o distrito, que as técnicas têm percorrido, concelho a concelho, promovendo sessões de informação junto de possíveis candidatos.
Entre os participantes estão "famílias com e sem filhos e pessoas monoparentais", avança Sara Faustino, assistente social, revelando a resposta que mais ouve quando questiona os candidatos sobre a motivação para integrar este projeto: "Temos muito amor para dar e queremos ajudar as crianças".
"Em nenhuma das sessões o apoio pecuniário é a motivação. Os afetos são a principal razão", reforça Sandra Mendes. Segundo a educadora social, nesse primeiro encontro, as dúvidas mais prementes estão relacionadas com a ligação entre as famílias de acolhimento e a biológica, a possibilidade de adotar ou o tempo médio da medida.
A essas e a outras questões as técnicas respondem com "toda a frontalidade", explicando que há contactos com a família de origem, que não lhes será permitido adotar a criança e que se trata de uma medida temporária, que, por exemplo, tanto pode ser por "dois ou três meses ou dois ou três anos".
Ainda antes de formalizar a candidatura, a família de acolhimento passa por uma formação inicial de 20 horas, que "desmitifica" muitas questões relacionadas com o acolhimento familiar. "O que fizerem nessa fase da vida da criança vai ficar marcado para o resto da sua existência", salienta Sara Faustino. Depois de formalizada a candidatura, há lugar a uma avaliação psicossocial. Se a decisão for favorável, a família entra na bolsa de agregados disponíveis para acolher crianças.
"O país está no início da mudança"
Joana Baptista, Psicóloga
Porque é que o acolhimento familiar é pouco utilizado em Portugal?
Durante anos, investimos no acolhimento residencial e ficámos acomodados a essa tradição. Nos últimos 20/30 anos, assistiu-se em vários países a um movimento forte pela desinstitucionalização, que visa diminuir a dependência do acolhimento residencial e aposta na reunificação familiar e no fortalecimento dos mecanismos de suporte à saída do acolhimento. Portugal só recentemente iniciou esse trajeto.
Como nos posicionamos no panorama europeu?
Portugal está na cauda da Europa. Até países do Leste, com forte tradição no acolhimento residencial, estão melhores do que nós. Em 2021, registou-se em Portugal o maior crescimento do acolhimento em 15 anos, com mais famílias capacitadas. Houve também um crescimento das reintegrações na família de origem. O país está no início da mudança de paradigma para a desinstitucionalização. Não significa fechar as instituições, que vão sempre ser necessárias.
Porque é que o acolhimento familiar não serve para todas as crianças?
Globalmente, é a medida mais protetora, mas pode não haver no sistema famílias disponíveis para as características particulares da criança ou o jovem/criança pode não estar disponível para viver com outra família que não a biológica. São duas medidas complementares.