Por ser "humanamente impossível" ir a todas, muitos deixaram de corresponder a todas as exigências da escola.
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Com um ano letivo como nunca aconteceu a chegar ao fim, os pais em teletrabalho estão exaustos, ansiosos e cansados de uma gestão acumulada. Em casa, tiveram que ser professores, trabalhar fora de horas e dar conta das tarefas domésticas. A sobrecarga levou muitos a desistir de tentar corresponder às solicitações da escola.
João Garcia tem uma mão cheia de crianças em casa - quatro meninas, de 5, 12, 13 e 16 anos, e um rapaz de 16. É uma família reconstruída. Ele é engenheiro eletrotécnico e dá aulas no ensino superior, a mulher é psicóloga. Estiveram os dois em teletrabalho. Em casa, revezaram-se para dar apoio aos filhos, ora para brincar com a mais nova, ora para ajudar em trabalhos. Desistiram da telescola quando os filhos se desinteressaram.
Saúde mental em risco
"Tinham muita carga horária e percebemos que não estava a adiantar nada", diz o pai, que assume que foi "humanamente impossível ir a tudo". "Eu estava a gerir a minha equipa, a dar aulas e a dar-lhes atenção. Foi muito exigente. Era frequente começar a trabalhar as 8.30 horas e parar às 22".
Para conseguirem dar conta de tudo, muitos pais trabalharam pela noite dentro. O psicólogo clínico Manuel Coutinho diz que a alteração dos hábitos de sono foi um dos grandes fatores de stress. "Isso aumentou a intolerância. Foi tudo um turbilhão e temos a saúde mental comprometida".
Segundo Sofia Ramalho, especialista na área da psicologia de educação, nos casos de filhos no 1.º e 2.º Ciclo, a exigência foi ainda maior, porque "obrigaram a muito acompanhamento". E houve grupos mais massacrados. "Os pais que são professores ou profissionais de saúde tiveram um triplo trabalho. E as famílias monoparentais também". Além da sobrecarga, "ainda tinham que lidar com o seu estado emocional face ao isolamento".
Excesso de trabalhos
Na pandemia, houve uma corrida aos ansiolíticos e antidepressivos, segundo a também vice-presidente da Ordem dos Psicólogos. "Não sabemos quem é que recorreu, mas há a grande probabilidade de serem adultos, trabalhadores e com filhos".
Certo é que os pais não estavam preparados para serem professores. "E não têm que estar. Sentiram-se puxados a um papel que não lhes devia estar atribuído. Muitos queixaram-se que não percebiam as matérias".
Houve falta de coordenação entre professores. "A desorganização por parte das escolas resultou em excesso de trabalhos. E os pais não conseguiam corresponder a tudo", diz a psicóloga.
Alguns acabaram por desistir de tentar. "Em Portugal, houve crianças que praticamente desapareceram das videoconferências". Agora, Sofia Ramalho não defende medidas de retenção ou aulas de compensação nas férias. "As famílias estão esgotadas. Mas é preciso que as escolas se preparem para medidas de apoio em setembro". E garante que os pais terminam o ano "exaustos, ansiosos e com receios em relação ao futuro dos filhos".
Sem cabeça para tudo ao mesmo tempo
Carla Silva afixava os horários da telescola e das aulas em videoconferência para ajudar o filho, de nove anos, a não esquecer nada. É paginadora. Está em teletrabalho e, além de Bruno Coelho, que está no 4.º ano, ainda tinha em aulas em casa as duas filhas mais velhas, Beatriz no 10.º e Carolina, no último ano de faculdade. O pai nunca parou de trabalhar. E a mãe teve uma crise de ansiedade.
No início do confinamento, a família, que vive em Pinheiro da Bemposta, Oliveira de Azeméis, teve que ir a correr comprar mais um computador e Carla perdeu a conta às vezes que ligou para a operadora de internet pelas falhas de rede. Ela e os filhos distribuíram-se pela casa e não faltaram gritos de umas divisões para as outras.
"As mais velhas já são autónomas, mas o mais novo era mais complicado. Por muito que digas que há um horário a cumprir, não é fácil. Tinha que lhe dizer a esta hora tens telescola, àquela hora tens aula. A minha sorte foi a minha filha mais velha", conta.
Carolina viu o estágio do curso de Ciências Biomédicas Laboratoriais parar abruptamente e, apesar da frustração, foi ela quem esteve a dar acompanhamento ao irmão. Procurou vídeos para reaprender a fazer contas de dividir e até fazia resumos da telescola. "Via as aulas para o poder ajudar. Fui uma professora em casa", diz a irmã.
Além da telescola e das videoconferências, Bruno ainda tinha aulas de apoio por ter dislexia. "Ele precisa de alguém sempre ao lado dele. E não dá para estar com a cabeça em tudo ao mesmo tempo, no trabalho e ainda no que ele tem para fazer", conta a mãe.
Num ano letivo atípico, Carla, que foi aluna da telescola noutros tempos, sente que esta opção foi melhor que nada, mas teme que Bruno não esteja preparado para ir para o 5.º ano. Acha até que devia repetir o 4.º .
"Principalmente por ser um ano de transição", diz a mãe. No meio de tudo isto, a irmã Beatriz tentou lidar com a sobrecarga de trabalho do 10.º ano. "Os professores pediam os trabalhos todos ao mesmo tempo e para o mesmo dia", relata. Deu o ano como perdido em disciplinas como Físico-Química e Biologia e Geologia. Vai ter exames para o ano.
Em casa, o frigorífico teve que se encher mais vezes. "Numa semana tive uma crise de ansiedade", conta a mãe. Apesar das dificuldades, Carla sente que os filhos ganharam mais autonomia, mas entristece-se por ter perdido o cortejo de Carolina e a festa de finalistas de Bruno. "Perderam momentos com muito significado".
Sinto que estava a trabalhar a toda a hora
Dizem-se uma família de sorte. Apesar de serem quatro em casa, em Aveiro, entre teletrabalho e ensino à distância, os pais Rui Pedro Santos, engenheiro civil, e Rolanda Gaspar, professora de informática, conseguiram manter a organização e a sanidade mental. Com a filha Catarina no 11.º ano prestes a fazer exames e Marta no 6.º º ano, o mais difícil de gerir foram as horas de trabalho e tarefas domésticas.
"Temos sorte, somos caseiros e temos um jardim em casa. Mas houve uma altura em que começámos a trocar o dia pela noite, a semana pelo fim de semana. Para ajudar a Marta, muitas vezes tinha que deixar de fazer o meu trabalho", conta Rolanda, que assume: "Sinto que todos os dias, a todas as horas, estava a trabalhar. E a casa é grande, ainda temos que limpar. Tudo junto, estou muito cansada". A mãe ia ajudando em Matemática, área em que é formada, Ciências e História. No Inglês e Português, Marta desenrascou-se.
Socorreu-se de um tablet, não havia portáteis para todos. Fazia resumos da telescola e ainda tinha aulas de violino, porque frequenta o ensino articulado. "Ouvimos muitas horas de violino. Ela tinha que fazer gravações e nunca ficava bem à primeira, nem à segunda, nem à quarta", diz Rolanda. E as tecnologias, às vezes, não correspondiam.
Também não foi fácil para a filha mais velha que, apesar do empenho, sentiu uma sobrecarga de trabalho e não se sente preparada para os exames. O próprio pai sentiu mais ansiedade.
"Houve alguma tensão com a acumulação e com os prazos que elas tinham para apresentar trabalhos". Estando em casa, sentiu uma obrigação acrescida de cumprir com o seu trabalho. "No local de trabalho, se não estiver a render, estou lá. Aqui, sinto-me mais desconfortável com isso. Foi complicado", diz Rui.
Dentro de casa, distribuíram-se pelos quartos e escritórios, carregaram secretárias e encontraram novas rotinas. "Elas punham papéis na porta para não incomodar se estivessem em aulas". Punham o despertador e acordavam sozinhas para facilitar a vida aos pais.
"Também houve gritos, não foi tudo uma maravilha. À hora de almoço, nunca vinham para a mesa e tinham que ajudar nas tarefas domésticas. Aí é que houve algum atrito", relata a mãe.
Sabem que não foi um ano com o rendimento de outro qualquer, mas os pais não o dão como perdido. "No caso delas, acho que ficaram preparadas. Elas são empenhadas e nós também exigimos isso", diz Rolanda, que acredita que a família saiu mais fortalecida.