Alunos apoiados com maior peso no ensino politécnico e interior. Cursos de excelência com percentagem baixa de estudantes de classes mais desfavorecidas.
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Uma radiografia às bolsas de estudo atribuídas aos estudantes no Superior, feita pela comissão independente nomeada pelo Governo para avaliar o regime jurídico das instituições, desmonta "casos evidentes de falta de equidade no acesso". Desde logo, o facto de as universidades com menor percentagem de bolseiros estarem em Lisboa e no Porto. Depois, uma maior preponderância de alunos apoiados no ensino politécnico e em instituições localizadas em zonas com "uma componente rural forte". Mas também a existência de "diversos cursos com uma percentagem demasiado baixa de alunos de classes mais desfavorecidas". Como é o caso dos cursos de excelência, como Medicina.
Analisando o sistema universitário, verifica-se que a Nova de Lisboa, o ISCTE, a Universidade de Lisboa e a do Porto têm a menor percentagem de bolseiros: 8,65%, 8,88%, 10,99% e 15,89%, respetivamente. Sendo que estas quatro instituições respondem por 57,5% dos universitários. Notando-se, assim, que "existem algumas instituições que exibem, claramente, um caráter de elitismo, nomeadamente da Área Metropolitana de Lisboa (Nova, ISCTE e ULisboa)", e que a "UPorto exibe algum caráter de elitismo, nomeadamente em algumas das faculdades, como Medicina, ICBAS, Medicina Dentária e Engenharia".
Estes baixos valores de bolseiros, lê-se no estudo, "podem ser resultantes de um nível salarial mais elevado ou da política de contenção das vagas nas instituições dos grandes aglomerados urbanos que torna mais difícil o acesso dos alunos de menores recursos". Sendo que esta última hipótese havia sido já avançada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico no estudo que fez para o Executivo sobre o financiamento do Ensino Superior.
No outro extremo, "verificam-se percentagens muito elevadas de bolseiros em zonas com uma componente rural forte". Como é o caso das universidades de Trás-os-Montes e Alto Douro (30,06%), do Minho (27,92%) e da Beira Interior (24,76%). Nas instituições insulares, os valores estão acima dos 30%.
Analisando os subsistemas de ensino, constata-se que o politécnico tem "maior participação por parte das famílias de menores rendimentos do que o universitário": 25,45% dos alunos são bolseiros, contra 17,02% nas universidades. Acresce que, exceção feita aos politécnicos do Porto e Lisboa - que, por norma, preenchem todas as vagas na 1.ª fase do concurso -, "os restantes, em particular os próximos da fronteira com Espanha ou situados no interior, têm dificuldade no preenchimento das vagas disponíveis e apresentam percentagens elevadas de bolseiros, em alguns casos superior a 30%", explica o estudo.
Cursos de elite
Nos casos extremos de cursos com baixas percentagens de alunos bolseiros identificam-se Engenharia e Gestão Industrial, com 1,98% na Universidade Nova de Lisboa, 2,53% na Faculdade de Engenharia do Porto (FEP) e 3,64% no Instituto Superior Técnico. Com notas mínimas de entrada, respetivamente, de 16,66 valores, 18,98 e 17,55. Ou, ainda, o curso de Engenharia Mecânica: 1,48% na Nova (nota mínima de 16,74 ) e 3,82% na FEP (17,98 valores).
Já em Medicina, com o peso dos bolseiros a oscilar entre os 7,29% na Nova de Lisboa e os 23,30% na Universidade da Beira Interior, explica-se que, neste caso concreto, "o efeito de instituição nota-se claramente", tanto mais que as "notas de acesso são bastante elevadas em todos os cursos pelo que a percentagem dos bolseiros é consistente com a influência da instituição".
Nas considerações finais, a comissão sublinha que o facto de "para o mesmo curso haver variações significativas de instituição para instituição é um efeito do caráter de bem posicional do Ensino Superior", criando "dificuldades a uma eventual política de eliminação de "numerus clausus" por dificultar a subsistência de diversas instituições, nomeadamente os politécnicos do interior".
Menos no privado
No ensino superior privado, no ano letivo 2021/22, apenas 11,33% dos estudantes eram bolseiros (9,43% no universitário e 15,81% no politécnico). O que "poderá ser consequência", lê-se no estudo, "de no ensino privado haver uma percentagem significativa de estudantes trabalhadores, não elegíveis para uma bolsa de estudo".
Dos primórdios
Desde os tempos medievais existia "um embrião de apoio social escolar", lembram os autores. Que recordam o Papa Urbano V, que "chegou a manter 1400 bolseiros". Ou o rei D. Duarte, que "convidava os estudantes ricos a pagarem, do seu bolso, os estudos dos pobres".
Entrevista
Há instituições e cursos com grande caráter elitista
O estudo realizado pela comissão a que preside revela o caráter elitista de algumas instituições. Temos um ensino para ricos e outro para pobres?
O problema da falta de equidade no acesso é algo que se verifica na generalidade dos sistemas de Ensino Superior e que é extremamente difícil de resolver. Na sua base está o caráter posicional do Ensino Superior. Um bem posicional é um bem ou serviço que é valorizado devido à sua oferta limitada e porque confere uma posição mais elevada na sociedade. Um curso de Medicina é um excelente bem posicional, uma vez que garante boas perspetivas de emprego e de uma boa carreira. Este tipo de bens tende a ser apropriado pelas classes economicamente mais favorecidas.
Numa altura em que se pretende alargar a base social do Superior...
Quando o Ensino Superior era um ensino de elite, com vagas limitadas e difícil acesso, era válida a chamada hipótese MMI (maximally maintained inequality), que dizia que na competição por vagas no Ensino Superior as classes mais favorecidas tinham vantagem e as classes menos favorecidas só conseguiam acesso quando as necessidades das primeiras estivessem a ser satisfeitas. Mas o que acontece quando o Ensino Superior se massifica e passa a haver lugar para todos? O que acontece é que passa a valer uma segunda hipótese, a EMI (effectively maintained inequality). O jogo alterou-se e o caráter distintivo deixa de ser entrar ou não no Ensino Superior, mas sim entrar ou não nos cursos de maior prestígio. É por isso que a percentagem de bolseiros é muito menor na Medicina (13,53%) do que na Enfermagem (38,05%). Para além do efeito curso, há também o efeito do prestígio da instituição. Veja, por exemplo, a percentagem muito baixa de bolseiros nos cursos de Engenharia e Gestão Industrial da Universidade Nova (1,98%), UPorto (2,3%) e ULisboa (3,64%) e de 18% na UBI ou 31% na UTAD. Portanto, há claramente instituições e cursos com um grande caráter elitista e que não se limita ao exemplo tradicional da Medicina.
Concorda com as vagas para alunos carenciados?
A política do anterior ministro Manuel Heitor de limitar as vagas em Lisboa e Porto não faz qualquer sentido. É de aplaudir a política dos atuais responsáveis do Ministério, que decidiram criar vagas destinadas a alunos de baixos recursos.