Projeto Dá a Tua Voz grava mensagens para pacientes com esclerose lateral amiotrófica conseguirem comunicar com recurso à alta tecnologia.
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Isabel e Kika são amigas desde sempre. Uma ligação geracional, quase umbilical, que levou a bancária de 56 anos a doar a própria voz à melhor amiga com esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma doença neurodegenerativa que, muito em breve, a impedirá de falar.
Isabel Moreira é uma das cem voluntárias do projeto Dá a Tua Voz, criado este ano pela Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica (APELA) com o objetivo de sensibilizar a comunidade para gravar palavras ou frases que serão usadas pelos doentes quando estes já não forem capazes de as articular. "É uma forma de os pacientes que já perderam a capacidade de falar terem a sua identidade acústica, que é tão importante, através de pessoas de Portugal inteiro", explica Margarida Oliveira.
Ser o próprio a gravar
No seu consultório, instalado na delegação da APELA no Porto, a terapeuta da fala grava e anota, uma a uma, as expressões escolhidas por Kika e sonorizadas pela amiga. "Estás tão gira!", exclama Isabel, de sorriso nos lábios, perpetuando uma das frases de eleição de Kika. A possibilidade de adaptar as gravações às preferências dos doentes é uma das mais-valias do projeto, sobretudo quando são feitas pela família ou amigos. "Com esta proximidade, conseguimos captar traços específicos e peculiares da personalidade dos pacientes. Muitas vezes, só os amigos e familiares é que conhecem esses traços", considera a terapeuta da fala.
Com a folha na mão, Isabel revê a lista que Kika elaborou para o seu banco de mensagens. Às expressões mais simples como "sim, por favor" ou "tenho sede", sugere adicionar algumas que possam ser úteis. "Também dou ideias porque já a conheço há muito tempo e sei exatamente como é que ela gosta de se referir às coisas", aponta Isabel.
Apesar de os voluntários ajudarem a "resgatar" a comunicação dos doentes, o trabalho dos terapeutas da fala é retardar a necessidade de recorrer a terceiros. "Tentamos que a gravação seja feita pelo paciente quando ainda tem a voz preservada, o que nem sempre é possível porque muitos já chegam com esta capacidade comprometida", aponta a terapeuta da APELA.
Foi precisamente a alteração na forma como se exprimia que levou Kika a procurar respostas. Em meados de 2020, a portuense começou a sentir a fala arrastada, em "câmara lenta", e no ano seguinte o diagnóstico de ELA confirmou-se. Já muito afetada, está agora a treinar para falar com a voz da melhor amiga com a ajuda de um monitor. Para isso, vai usar um sistema de comunicação que identifica palavras através do movimento dos olhos.
De acordo com Teresa Moreira, diretora-executiva da APELA, a fase mais complicada da evolução da ELA é quando o doente deixa de comunicar. "O importante é fazê-los perceber que há mecanismos que os podem ajudar e, com este projeto, criamos alguma esperança e qualidade de vida porque esta doença tem um impacto enormíssimo, quer no doente quer em toda a família".
Embora as gargalhadas dominem o consultório durante as gravações, Isabel evita pensar no futuro. "Prefiro continuar a pensar na Kika com a voz dela. A minha voz é só um pormenor que a vai ajudar. A Kika tem a voz dela e é com essa voz que a quero ouvir".
Diagnóstico
A esclerose lateral amiotrófica é uma doença neurológica, degenerativa, progressiva e sem cura que afeta os neurónios motores responsáveis pelo movimento dos músculos.
Número de doentes
A APELA apoia cerca de metade dos 1200 doentes que existem em Portugal. Há apenas 100 doentes a usufruir das terapias presenciais, nas delegações do Porto e de Lisboa.
Apoio
A tecnologia é comparticipada pela Segurança Social, mas os apoios demoram a chegar, pelo que a APELA dispõe de um banco de produtos de apoio para ceder os equipamentos necessários aos doentes em tempo útil.