Estudos apontam um adiamento do início das relações sexuais, uma menor quantidade de parceiros sexuais, uma redução das práticas de risco, o aumento do uso de anticoncecionais. Perigos de diminuir o peso da escola neste domínio são tremendos, avisam especialistas.
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"Seria irresponsável dar a uma criança um carro desportivo sem a ensinar a conduzir. Da mesma forma, é perigosamente negligente permitir que os corpos dos jovens se desenvolvam mais rápido que o seu entendimento do sexo e da sexualidade." A frase é de Jayathma Wickramanayke, enviada do secretário-geral das Nações Unidas para a Juventude, e de alguma forma resume a evidência existente em relação ao impacto benéfico da educação sexual no comportamento dos jovens, hoje plasmada nos mais diversos estudos, documentos e tratados internacionais. Seja ao nível da redução dos comportamentos de risco, das doenças sexualmente transmissíveis, das gravidezes indesejadas, ou num plano mais amplo. Na orientação técnica internacional sobre educação em sexualidade, documento lançado pela UNESCO em 2009, e desde então sucessivamente atualizado, poder ler-se, por exemplo, que há hoje evidência suficientemente robusta de que uma educação sexual abrangente "permite que crianças e jovens desenvolvam conhecimentos, atitudes e hábitos apropriados à sua idade, valores positivos, incluindo o respeito pelos direitos humanos, a igualdade de género e a diversidade, bem como atitudes e competências que contribuem para relacionamentos seguros e positivos".
O tema está na ordem do dia, à boleia das alterações à disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. A polémica estalou há um par de semanas, quando a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania e as Aprendizagens Essenciais da disciplina foram colocadas em consulta pública e se percebeu que, ao contrário do que acontecia com o último programa de aprendizagens, deixou de haver referências explícitas à sexualidade e à educação sexual. As alterações motivaram indignação quase generalizada entre psicólogos, pediatras, terapeutas sexuais e partidos de Esquerda, desde logo pelo facto de Portugal estar comprometido com várias convenções e tratados internacionais que apontam a educação sexual e a saúde sexual e reprodutiva como parte integrante dos direitos humanos - é o caso da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU (1989), da Convenção de Istambul (2011) ou dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (Agenda 2030), entre outros. Em entrevista ao "Expresso", Daniel Sampaio, reputado psiquiatra que coordenou o grupo de trabalho responsável por laborar a lei da educação sexual, publicada em 2009, assumiu-se "indignado". "A educação sexual não é ideologia, é ciência", insurgiu-se.
Numa nota explicativa, o Ministério da Educação, liderado por Fernando Alexandre, bem tentou rebater a narrativa, garantindo que a sexualidade não sairia da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, na medida em que seria incluída numa dimensão intitulada "Saúde". Na mesma nota, porém, apontava-se que, noutros países, a sexualidade "não é um tema habitualmente abordado no âmbito das disciplinas de Cidadania" e assegurava-se que a educação sexual estaria "presente no currículo", uma vez que faz parte das aprendizagens essenciais de outras disciplinas, de acordo com os desígnios da legislação de 2009. Definitivamente de fora do currículo fica a questão da identidade de género, confirmou o próprio ministro, que justificou a decisão assim: "É uma matéria de grande complexidade e muitas vezes as pessoas não estão sequer preparadas para lecionar isso." As explicações não estancaram as críticas. Num parecer enviado ao Governo, no âmbito da consulta pública sobre a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, a Ordem dos Psicólogos vinca que "a referência à sexualidade nos currículos é restrita, limitada e tecnicamente imprecisa" e acrescenta que "a própria ausência do termo "sexualidade" retira visibilidade e intencionalidade pedagógica à educação sexual".
Início mais tardio e consciente
Polémicas à parte, vale a pena voltar ao início. Que é como quem diz: à evidência existente relativamente ao impacto da educação sexual no comportamento dos mais jovens. Margarida Gaspar de Matos, psicóloga clínica e da saúde, investigadora sénior no Instituto de Saúde Ambiental (Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa) e professora catedrática na Universidade Católica Portuguesa, que há vários anos se dedica a estudar esse mesmo impacto, é perentória. "Todos os estudos mostram que a educação sexual protege os alunos, levando-os a tomar decisões mais informadas e com menos risco no que diz respeito à sua vida sexual. Tendem a iniciá-la mais tarde, a conversar e decidir em conjunto o seu início, a proteger-se mais de gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis, a saber dizer não e resistir à pressão e ao medo de se ser trocado. Previne ainda a violência no namoro e está associada a menos interrupções voluntárias da gravidez." Os estudos em que tem estado envolvida não são exceção. "As nossas investigações concluem exatamente que os adolescentes começam a ter relações cada vez mais tarde." A exceção, em relação às tendências globais, parece ser o uso do preservativo, que, em Portugal, na faixa etária dos 11 aos 16 anos, tem vindo a diminuir, ao contrário do que acontece noutros países. "Nos focus groups, dizem-nos "já sabemos tudo sobre o preservativo", mas pelos vistos isso não chega." Voltando à evidência internacional, tem apontado ainda para uma frequência mais baixa das relações sexuais, uma quantidade menor de parceiros sexuais e um aumento do uso de anticoncecionais, no geral.
Ana Quinta Gomes, terapeuta sexual, docente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP) e coordenadora do grupo de investigação em sexualidade e género do Centro de Psicologia da Universidade do Porto, também aponta à longa lista de benefícios que têm vindo a ser constatados pela investigação científica ao longo dos anos. E procura descansar quem ainda se possa inquietar com o tema. "Não há qualquer razão para temer que se abordem as temáticas da sexualidade com crianças e jovens. Pelo contrário, só estaremos a criar jovens mais informados e conscientes. A educação sexual é uma ferramenta poderosa de conhecimento, de proteção, de construção de vivências mais responsáveis e também de respeito por si e pelos outros."
Hugo Tavares, pediatra com diferenciação em medicina da adolescência que trabalha no Centro da Criança e Adolescente do Hospital CUF Porto, constata que os jovens têm cada vez mais informação sobre a matéria, em parte devido ao papel do sistema de ensino. "Hoje em dia, quando lhes falo sobre questões corporais e mudanças na puberdade, por exemplo, ouço com muita frequência: "Já falámos nisso na escola". E isso é uma diferença substancial em relação ao que acontecia há uns 15 anos, quando comecei a abordar estas temáticas. Sempre que prescrevia uma pílula, sentia necessidade de fazer uma pequena revisão do ciclo menstrual e deparava-me com muitas jovens que aos 16, 17 anos descobriam que havia uma vagina e uma uretra. Hoje há mais conhecimento, sem dúvida." Na verdade, para lá da escola, há um leque crescente de informação disponível. E aí, as notícias já são inquietantes. "Há um recurso excessivo à informação online que é um flagelo, um excesso de fontes de credibilidade questionável e uma dificuldade grande dos adolescentes em perceber se o que estão a ler é fiável. Acontece muito com a pílula, por exemplo. Há inúmeras adolescentes que têm uma visão muito negativa e errada dos efeitos negativos da pílula. Acreditam em verdades paralelas que são difíceis de contrariar." Também por isso, entende, a educação sexual em contexto escolar desempenha um papel crucial. "Perdê-la seria perder mais uma fonte credível e mais um momento importante para desmistificar informações a que têm acesso por outras vias."
Ana Quinta Gomes também alerta para os riscos de um possível desinvestimento da formação nesta área. "Negar aos jovens este direito à educação sexual, baseada na evidência, compromete o seu desenvolvimento afetivo-sexual, desde logo um conjunto de competências socioemocionais que são trabalhadas neste contexto, e que vão desde o direito à diferença, ao respeito pelo outro e pela diversidade, passando pelo conhecimento dos limites do próprio corpo e pela empatia pelas necessidades do outro. Além de comprometer de forma clara a sua saúde e bem-estar." A especialista avisa ainda para um possível "aumento das situações de abuso e violência entre pares e, principalmente, entre crianças e jovens que já se encontram em situações de maior vulnerabilidade". Margarida Gaspar de Matos não esconde a preocupação. "O maior risco é mesmo o obscurantismo, que leva à ignorância. Na prática, pode traduzir-se em questões de saúde, de mal-estar e de cidadania, desde gravidezes não planeadas, doenças sexualmente transmissíveis, violência associada ao sexo, coação, desrespeito pelos direitos humanos, nomeadamente da mulher."
Violência, abusos, pornografia
A temática afigura-se ainda mais pertinente se tivermos em conta que as queixas por violência no namoro continuam a aumentar (só no ano passado, a PSP registou 1412 ocorrências) e que as doenças sexualmente transmissíveis seguem em crescendo, sobretudo entre os mais jovens. Acresce que mais de metade dos crimes sexuais contra menores são cometidos por familiares. E que se multiplicam os alertas para o impacto negativo da pornografia sobre os adolescentes. Tudo fatores que reforçam a importância da educação sexual em contexto escolar. Hugo Tavares explica o que está em causa neste último ponto. "Para um jovem que não tem experiência nem vivência sexual, ser exposto a uma pornografia explícita, que é irreal e teatralizada, cria uma expectativa de desempenho desajustada, que o vai colocar sob pressão e possivelmente prejudicar o seu desempenho. Além de haver um risco de normalização de comportamentos altamente violentos e da sua prática. Sem o contrapeso da educação sexual, o risco é ainda maior."
Pela experiência de Sofia Castanheira Pais, docente da FPCEUP na área das Ciências da Educação e membro do Centro de Investigação e Intervenção Educativas, os próprios estudantes reconhecem a pertinência de abordar matérias. A investigadora coordenou, a par de Ana Quinta Gomes, um estudo científico levado a cabo no âmbito do projeto "Prevenção e Intervenção na Violência Sexual Baseada no Género", desenvolvido pela Associação de Planeamento Familiar (APF), e garante que, de uma forma geral, são os próprios alunos "a reclamar da necessidade de ter mais espaços na escola em que possam explorar temas ligados às questões da sexualidade". Quanto aos professores (a APF também deu formação a vários docentes, no âmbito do mesmo projeto), a investigadora admite que uma parte deles não se sentem "suficientemente preparados para abordar estas temáticas" e beneficiariam "de ter um maior espaço intencionalmente previsto para repensar as suas práticas pedagógicas e acolher as dúvidas e experiências que os alunos lhes trazem". "O ideal é que as duas coisas caminhem a par: por um lado, um investimento ao nível da formação dos profissionais; por outro, um reforço dos espaços no contexto escolar em que seja possível tratar estes temas de forma séria e adaptada a cada ciclo de escolaridade. Acredito que a escola tem um potencial enorme para desconstruir um conjunto de mitos e tem este dever, que já não é só de instruir, mas também de formar cidadãos críticos e ativos."
Margarida Gaspar de Matos também reforça a necessidade de formação. E frisa que professores impreparados não deverão ser argumento para reduzir a expressão da educação sexual nas escolas. "Tal como na Física e na Matemática, haverá melhores e piores professores, professores com mais ou menos formação e sensibilidade, professores mais ou menos equilibrados emocionalmente. Mas parece óbvio que a solução não é proibir as disciplinas e sim otimizar e monitorizar a ação formadora dos professores."