São jovens atletas, menores de idade, que arriscam ir sozinhos para o estrangeiro com a ambição de uma carreira desportiva na mala. Vão para academias de formação, para clubes lá fora, alguns pagam para isso, outros são convidados e oferecem-lhes todas as regalias. E os pais deixam-nos voar, sem lhes cortarem as asas.
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Era agosto de 2024, David Conceição entrou no aeroporto, a ficha caiu-lhe nesse momento e não foi capaz de olhar para trás, para os pais, os dois irmãos, os três amigos que lhe diziam adeus. Tinha passado as noites anteriores em branco, acordado até às tantas da madrugada, já carregado de saudades, aturdido pelo receio de que o irmão mais novo se esquecesse dele quando fosse para longe. Naquele dia, nas Partidas do aeroporto, sabia que não ia conseguir segurar as lágrimas, engoliu o medo e encheu-se de coragem. David tinha 13 anos quando embarcou sozinho para Itália (fez 14 em março), viajou como menor não acompanhado, foi atrás do sonho desportivo. Tem certezas absolutas de querer ser jogador de basquetebol profissional e a vida abriu-lhe caminhos inesperados além-fronteiras, atirou-lhe para o colo uma oportunidade a que não quis virar a cara. Decisão dele.
Tem um metro e oitenta de altura a enganar a mocidade, os cabelos escuros aos caracóis, fala pelos cotovelos quando o assunto são cestos e torneios, é quase impossível travá-lo. O italiano já se atravessa nas conversas, aprendeu a língua num despacho. Mas comecemos pelo princípio. O pai de David também jogou basquetebol, é cabo-verdiano, mudou-se para Portugal para jogar. Mas em pouco ou nada influenciou a decisão do filho que, ainda pequenino, oito anos de gente, depois de experimentar outros desportos, acabou a render-se à modalidade que tem vindo a gerar estrelas globais, de Michael Jordan a LeBron James ou Kobe Bryant. E é precisamente nas estrelas que David quer tocar.
A morar em Matosinhos, com os pés quase na praia, começou a encestar bolas no Guifões Sport Clube. “Primeiro, era mais alto do que os outros, o que me dava facilidade. Depois, divertia-me mesmo a jogar. Apaixonei-me pelo basquetebol, não sei explicar porquê”, conta ele. A diversão tornou-se caso sério de amor, quis treinar cada vez mais, começou a ter mais e mais minutos de jogo. A ambição a nascer. Até que uma lesão na tíbia, tinha 12 anos, o forçou a uma pausa. Mas David é obstinado, dedicou-se a treinar lançamentos nessa altura, todos os dias. As previsões do médico apontavam para um ano e meio longe dos campos, ele recuperou em sete meses. “Quando voltei a jogar e comecei a ganhar confiança, estava como novo.”
Desde então, fez-se campeão distrital de sub-14 com a camisola do Guifões, as transmissões dos jogos no YouTube ajudaram à projeção. Ainda foi convocado para jogar pela seleção distrital do Porto e um vídeo, com uma série de imagens dele compiladas, acabou numa afamada página de TikTok, “Overtime Europe”, que reúne “o melhor do basquetebol europeu” e soma mais de um milhão de seguidores. Começou assim o bombardeamento de contactos. Primeiro, o Real Madrid convidou-o para ir lá jogar um torneio, uma semana de treinos e competição, um espanto absoluto, David nunca tinha visto nada assim, “uma autêntica cidade, com uma residência enorme para jogadores”.
Seguiu-se o Barcelona, que chegou a apresentar uma proposta para que ele fosse para a academia catalã, mas, como implicava aos pais grandes despesas, nomeadamente com o alojamento, caiu por terra. Ainda foi a Múrcia no verão, a convite. Seguiu-se Itália, o Aquila Basket Trento pediu-lhe para ir a um torneio e logo depois foi o Orange1 Basket Bassano. “A Bassano, fui com o meu pai e bastou um dia para nos fazerem uma proposta.” A mãe, Sofia Lemos, nem sabia que isto era possível. “Os clubes contactavam-nos a nós, os pais, e nem queríamos acreditar. Não conhecíamos ninguém que, com esta idade, tivesse tido um convite. E eu que achava que nunca na vida ia ficar longe de um filho, comecei a pensar que não lhe podia cortar as pernas”, lembra.
A proposta do Orange1 era difícil de recusar, mesmo David não sabendo falar italiano, e pouco se desenrascando no inglês. Sonha alto, quer jogar nos Estados Unidos. A mãe tinha-o acompanhado a alguns torneios fora, viu “treinadores dedicados só aos miúdos”, um “acompanhamento completamente diferente”. “A proposta incluía não só o financiamento de tudo o que tenha a ver com o basquetebol, como escola, alimentação, alojamento, viagens para vir cá, e ainda uma mesada de 50 euros para ele gastar no que quiser. Além disso, pode ficar lá até concluir os estudos. Não é um contrato, chama-se acordo”, explica Sofia. De coração apertadinho, apoiou o filho, não lhe amainou o voo, “é este o sonho dele e Portugal não tem estas condições, não tem esta cultura desportiva no basquetebol”. David quis ir.
As primeiras semanas em Bassano del Grappa, a uma hora de Veneza, foram duras, David ligava a chorar, a mãe acabava a chamada e desabava em lágrimas também. Dizia-lhe: “Queres vir embora? Desistir não é um fracasso, se não estiveres feliz, anda”. Há várias regras, o clube pede para que os pais não visitem os miúdos no primeiro mês, para lhes dar margem para se adaptarem. David está numa residência, com muitos quartos e outros jovens atletas (alguns também estrangeiros). Todas as semanas há prémios para o quarto mais arrumado, se estiverem desarrumados arriscam-se a ficar sem treinar. Se as notas forem más, idem. Entrou numa escola pública, o currículo adaptado, aulas todas em italiano, tinha apoio com a aprendizagem da língua no clube. Temeroso ao princípio, levou tempo a baixar a guarda, mas ambientou-se num ápice. “Tenho 9,5 em 10 a Italiano”, congratula-se, para logo dizer: “Agora estou completamente integrado, tenho amigos da escola e amigos do clube. Estou a divertir-me muito. Uma senhora cozinha para nós e aos sábados à noite encomendamos pizas”. Da roupa trata ele. “Nem sabia pôr a máquina a lavar quando cheguei, misturava as cores, estraguei muita roupa”, recorda a rir.
E no basquetebol as condições estão longe das que conhecia. “Faço treinos individuais todos os dias, ginásio todos os dias, além do treino coletivo.” Na Páscoa, veio a Portugal, treinou no antigo pavilhão, nunca descansa, nem mesmo de férias. Há de voltar em junho para jogar na seleção nacional. Quem sabe um dia não segue as pisadas de Neemias Queta, o primeiro português a chegar à NBA.
Do ténis ao voleibol, de Espanha à Polónia
Na verdade, o caso de David Conceição não é inédito. Se recuarmos no tempo, outros atletas em Portugal foram para fora do país, atrás do sonho, ainda menores. Olhemos para o mais célebre nome do ténis português, que se despediu dos courts no ano passado. João Sousa foi para Espanha sozinho aos 15 anos. Deixou Guimarães, mudou-se para Barcelona, queria ser tenista profissional. No nosso país “só havia investimento no futebol” e foi preciso “tomar decisões”, assumiu recentemente num podcast. Gonçalo Marques, hoje com 19 anos, conhece esta história de cor, João Sousa é um dos seus ídolos, a par do sérvio Djokovic, e também ele fez as malas ainda adolescente para ir para Espanha. Rebobinemos, pois, a cassete da vida até à infância. Gonçalo lembra-se de querer jogar futebol, mas foi experimentar ténis aos cinco anos e nunca mais parou. É da Trofa, começou por treinar em Santo Tirso, foi percebendo que os courts eram mesmo o seu lugar. “Aí a partir dos 12 anos, comecei a ter treinos bidiários, de manhã antes de ir para a escola, e à tarde, quando saía das aulas. E ainda fazia ginásio.” A fasquia a subir, torneios internacionais, os pais começaram a pensar na hipótese de uma academia em Espanha, um investimento alto, e aos 15 anos Gonçalo enfiou-se num avião a caminho de Vilhena, em Alicante. “Fui com o meu irmão mais velho, que ficou comigo as duas primeiras semanas, depois fiquei sozinho. O meu pai encarou de forma mais tranquila, à minha mãe custou-lhe muito ver o filho sair de Portugal.”
Gonçalo aterrou na Juan Carlos Ferrero Tennis Academy e enturmou-se rápido por lá, sentiu logo um ambiente familiar. “Aquilo fica num sítio bastante isolado, no meio de campos, claramente focado para o treino. Dormíamos numas pequenas cabanas, uma para cada jogador e havia jovens de muitas nacionalidades. Não tinha de cozinhar, havia cantina, mas tinha de tratar da roupa e de manter a minha cabana arrumada, quase todas as semanas faziam uma inspeção aos quartos”, revela. Os pais faziam coincidir as visitas com os torneios, para o poderem ver e apoiar. E a rotina era dura: treinos de ténis e ginásio de manhã, à tarde outra vez. Encaixava a escola nas horas de almoço e ao final do dia. “Já em Portugal, quando comecei a treinar muitas horas, tinha mudado para a escola online. Quando fui para Espanha, tinha a opção de fazer a escola lá, mas optei por me manter na escola portuguesa online, porque era em português.” Mesmo assim, aprendeu espanhol à força de o ouvir diariamente, esteve quase três anos na academia, hoje tem amigos tenistas espalhados pelo Mundo, nunca lhe passou pela cabeça desistir. “Até porque a diferença era brutal, principalmente nos parceiros de treino. Além disso, tínhamos tudo concentrado no mesmo sítio, a fisioterapia, os campos, o ginásio.”
Gonçalo regressou recentemente ao país de partida, aos 18, queria mudar de ares, Lisboa era o destino, “a única opção viável cá para dar continuidade”. Está na Frederico Marques Tennis Academy, do antigo treinador de João Sousa. Os pais continuam a financiar-lhe o sonho, arrendaram-lhe um apartamento na capital, ele aprendeu a cozinhar, depois de muito arroz queimado. Nos últimos meses tem estado parado, devido a um problema de saúde, nada que lhe trave a ambição. “Imagino-me, no futuro, a jogar no circuito ATP, onde estão os melhores do Mundo.”
Se virarmos a agulha para o desporto-rei, também aí há exemplos destes, mesmo que as regras da FIFA, organismo máximo do futebol a nível mundial, para as transferências de jovens jogadores sejam apertadas. Entre continentes, só podem circular se forem maiores de idade. Já dentro do território da União Europeia, há casos de transferências de futebolistas com 16 ou mais anos, sendo certo que o clube que contrata tem de apresentar uma série de pressupostos, nomeadamente a inscrição do jogador numa escola do país de destino, um tutor legal, acesso a todas as condições técnicas e humanas. E fica sempre sujeito à aprovação da FIFA. “Mas tenho informação de que a FIFA, pelo menos até há um mês, não estava a autorizar”, refere Artur Fernandes, presidente da Associação Nacional de Agentes de Futebol. Contudo, quando já há um contrato profissional, salienta, o processo é facilitado. Recuando a 2017, o caso do internacional português Pedro Neto, agora a jogar no Chelsea de Inglaterra, é prova disso. Era uma das maiores promessas formadas no Sp. Braga e saiu do clube minhoto com 17 anos, onde já tinha contrato profissional, para a Lazio, em Itália.
Mas a história da saída de jovens atletas do país também se faz no feminino. Júlia Kavalenka não era menor de idade, é certo, porém tinha apenas 18 anos quando fez as malas. Quase numa repetição poética do que aconteceu com o pai, Siarhei Kavalenka, bielorrusso, que, ainda jovem, em 1998, se mudou para Portugal para jogar andebol no F. C. Porto. Nessa época, ajudou o clube a tornar-se campeão nacional na modalidade, num feito que já não se via há décadas. Mas voltemos a Júlia, que nasceu cá, no Porto, onde os pais se mantêm. Não seguiu as pisadas do pai no andebol, experimentou vários desportos até chegar ao voleibol. “O meu irmão tinha acabado de nascer e, no período em que a minha mãe ficou no hospital, tinha de ir com o meu pai aos treinos. Acontece que antes dos treinos dele, havia treinos de voleibol. Tinha seis anos e achei piada porque não teria de correr.” Pensando bem, cresceu a ouvir as histórias do pai, de viagens com a equipa, de jogos renhidos, e sempre imaginou que também ela seria atleta. Concretizou-se.
A prioridade para os pais era que acabasse os estudos, assim foi, mas mal terminou o 12.º ano, Júlia quis abalar do país, para “jogar a um nível muito profissional, coisa que na altura em Portugal era impossível”. Estava na AJM, a equipa feminina de voleibol do F. C. Porto, também já jogava na seleção nacional. Um agente ajudou, um clube da Polónia interessou-se “e pagou um valor à Federação Portuguesa de Voleibol”. “O clube fornecia casa, tudo. Mas foi o meu primeiro ano fora, sozinha, com dificuldade com a língua, a chegar a casa cansada de treinos e a ter de cozinhar. Admito que foi um choque, tendemos a idealizar as coisas, a pensar que vai ser tudo perfeito e o mundo do desporto é tudo menos perfeito.” Ligava a toda a hora aos pais, sofria com a distância, doíam-lhe as saudades. Ao cabo de uma época na Polónia, chegou uma proposta de Itália. “Nem acreditei, Itália foi sempre o meu sonho a nível de voleibol. A equipa feminina conquistou o ouro nos Jogos Olímpicos de Paris, hoje até jogadoras americanas querem vir para cá.” Nem pensou duas vezes. Ainda passou por França pelo meio, mas há cinco épocas que assentou arraiais em Itália, está em Monza, bem perto de Milão. É fluente na língua, muito graças a uma colega de casa italiana, também voleibolista, que a ajudou nos primeiros tempos.
Por lá, ainda se pôs a estudar Fashion Design Management na Universidade de Turim, fez a licenciatura online, a conciliar com treinos bidiários e jogos. Tem 26 anos, sabe que o desporto não dura para sempre, está a preparar o futuro, quer ser designer de moda. “Sou o oposto do que se imagina de uma atleta, gosto de roupa elegante, arranjo-me até para ir às compras.” Agora, só vem a Portugal para visitar a família e jogar na seleção nacional, “que tem vindo a crescer, já não há tantas diferenças assim nas condições”. Com uma certeza. “Não está na equação voltar de vez, Itália já é casa para mim.”
Na Alemanha do andebol, Portugal não entra nos planos
É a mesma certeza que Gabriel Viana tem. Afinal, desde os 12 anos que está na Alemanha, Portugal há muito que ficou para trás no mapa da vida, já lá vai uma década para sermos precisos. “E o andebol na Alemanha é muito profissional.” Esta história começa na Póvoa de Varzim, onde se aventurou no andebol ainda gaiato, cinco anos apenas, por influência do pai, que também fora jogador, agora treinador, e que criara um clube com amigos. “Também queria experimentar futebol, mas no primeiro treino de andebol, gostei logo, já não quis ir ao futebol. Foi amor à primeira vista.” O talento contribuiu, tanto que, mais tarde, a família decidiu emigrar, mudar a vida toda para a Alemanha, país forte na modalidade e onde Gabriel sempre sonhara jogar, já a pensar no futuro do filho. Aterraram em Dortmund, poucos meses depois Gabriel entrava na academia do VfL Gummersbach, a 70 quilómetros da casa dos pais, uma hora de carro. Primeiro, os pais contactaram o clube; depois, Gabriel foi lá fazer um treino, pediram-lhe para voltar, experimentar ficar uma semana, por lá ficou (os pais pagavam uma mensalidade).
“Tinha 13 anos quando fui morar sozinho. Vivíamos num hotel, o último andar era todo para os jogadores, cada um tinha o seu quarto”, recorda. Treinava duas vezes por dia, de manhã antes da escola e à tarde quando voltava. “Ainda tínhamos professores a dar-nos explicações aos sábados.” Gabriel aprendeu alemão num instante, “não havia outra hipótese, estava sempre com alemães, na escola, no clube”. Não era o único estrangeiro por ali, lembra-se de um rapaz da Bósnia, de um de Israel, todos no mesmo barco. No primeiro mês ainda pensou desistir, mas sabia que os pais estavam a sacrificar-se, não baixou os braços. “No Gummersbach, as condições eram brutais, tínhamos tudo. Todos os anos equipamentos novos, um pavilhão grande para treinar.” E não, não faltavam regras. Às 6.45 horas todos tinham de estar no pequeno-almoço, depois da hora de jantar não podiam sair, só a partir dos 16 anos e com autorização dos pais. Mas a juventude é dada ao engenho, juntavam-se muitas vezes para se escapulirem, para saírem à socapa e irem a festas.
Desde então, Gabriel cresceu, o ponta esquerda saltou para a equipa principal do VfL Gummersbach, com contrato profissional aos 18. Saiu do internato, já recebia salário, arrendou um apartamento. No entretanto, foi medalha de prata por Portugal no Campeonato da Europa de sub-21, em 2022. Não é de estar quieto, aflige-lhe não ter os dias carregados, vai daí começou um curso profissional de Engenharia Mecânica numa empresa alemã, onde trabalha, acumula com o desporto. “Preciso de ter um plano B”, realça. Há coisa de três anos, recebeu uma proposta de outro clube, o TuS Ferndorf, aceitou, “um contrato melhor, um salário melhor”. “Se tivesse ficado em Portugal, não teria a carreira que tenho hoje. Com 15 anos, já jogava em pavilhões com mil adeptos, é outra realidade.”
Uma realidade que muitos atletas de palmo e meio procuram quando arriscam ir para fora do país, para longe da família, para uma escola nova, com uma língua diferente e o Mundo inteiro pela frente.