Pai aos 50
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A certa altura, tornou-se uma rotina. Ele dizia: “Papá, não quero ir para a escola”.
E eu: Oh, claro que queres. Vais brincar com o Martim, com a Teté, com o David, com o Tiago...
E ele: “Não gosto do Tiago”.
Habituei-me a rir-me, e entretanto aconteceu tanta coisa que deixou de existir rotina: férias, síndromes virais, festas da cidade. Houve um momento em que ele passou até a gostar da ideia de ir para a escola, embora ao chegar tornasse a desabar em lágrimas.
Na semana passada, voltámos à casa de partida. Ele: “Papá, não quero ir para a escola”.
E eu: Oh, claro que queres. Vais brincar com o Martim, com a Teté, com o David, com o Tiago...
E ele: “Não gosto do Tiago”.
Tornou-se uma rotina outra vez. Todos os dias: “Não gosto do Tiago. Não gosto do Tiago”.
Até que, ontem de manhã, já nem houve intróito: “Tenho medo do Tiago, pai”.
Franzi o cenho.
– Porquê, amor?
E então contou-me. “Porque o Tiago faz dói-dói ao Artur”.
– Como assim, querido? – Olhei-o. – Só ao Artur ou à Vitória também?
“Não, à Vitória o Tiago não faz dói-dói. O Tiago só faz dói-dói ao Artur.”
Ocorreu-me que, um dia, o meu filho poderá ser vítima de bullying. Tive medo por ele, mesmo sabendo que a maior parte das vítimas de bullying o são pelas melhores razões – porque são mais sensíveis, porque rejeitam convenções, porque resistem a lideranças pela força – e que, muitas vezes, o resultado final da relação é o de darem emprego aos seus agressores, determinados a não deixarem o rancor levar a melhor.
Evidentemente, não era disso que se tratava. Miúdos com menos de três anos não são bullies: são vítimas de dinâmicas defeituosas que os cuidadores deixam impor-se. Mas alguma coisa dentro de mim se encarniçara. Consciente ou inconscientemente, saí de casa determinado a fazer pelo menos uns olhos ao garoto. Costumo interagir com deles. A Kika devolve sempre um sorrisinho lindo. O João dá-me um high-five. A Mafalda vê-me a subir as escadas, olha para trás e anuncia: “Olha o pai do Artur!”.
Porque é que eu não havia de fazer uns olhos ao Tiago, se já antes ouvira da tendência dele para dar dentadas aos colegas?
Portanto, ao entregar o Artur à Bia, contei-lhe da queixa, que ela desvalorizou o mais que pôde, mas não deixou de registar. Por mim, basta: se estiver atenta a que não se repita para além do que é natural as trapalhadas repetirem-se entre garotinhos, estamos bem.
À volta dela estavam as crianças que já tinham chegado (somos sempre dos últimos), e entre elas o Tiago. Preparei-lhe os olhos. Mas vi o seu cabelo loirinho, o sorriso tímido, os olhos amendoados totalmente adoráveis, e perguntei-me antes se o Artur não o teria confundido com o Vicente.
Voltei para o escritório vencido. À noite, o Artur informou-me: “Não gosto do Salvador”.