Raquel cresceu sem a caixinha mágica. Helena está reformada, sai de casa, não se encolhe no sofá. Joana e Yassine vivem no meio da natureza, com dois filhos, entretêm-se em família. Paula cansou-se dos estímulos a toda a hora, em todo o lado. Rui quer tempo para ler e escrever. Vivem sem televisor há anos, sem saudade.
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Em criança, Raquel Costa não tinha televisor em casa, o pai dizia que não queria propaganda fascista a sair por um ecrã a preto e branco e só comprou o aparelho depois do 25 de Abril. Até lá, a família assistia ao festival da Eurovisão, a um ou outro programa, na sala de estar da vizinha. Na altura, as brincadeiras eram na rua, bolas, jogos, bicicleta. Desde os 18 anos, quando saiu de casa e viajou pela Europa durante algum tempo, que não tem televisor. Há mais de 40 anos. O passado influenciou o presente. “Os meus interesses eram outros, não valorizava a televisão, continuo a não valorizar.” Nem tem paciência. “É tempo perdido e a publicidade é outra parte absolutamente insuportável.”
É professora de Educação Física numa escola em Vouzela, mora numa pequena aldeia do concelho de São Pedro do Sul com três habitantes permanentes, ela e mais dois. A televisão não lhe faz falta. Tem uma aparelhagem com mais de 30 anos, o gira-discos já não funciona, os leitores de cassetes estão operacionais, as colunas são boas, o som é de qualidade, o rádio tem uso constante, sintonizado sobretudo na Antena 1 e na Antena 2, em programas culturais, notícias, música. “O radiozinho chega-me e é uma maravilha.” A Internet vem do satélite, não há fibra no chão, e o computador, o único ecrã em casa, serve-lhe para ler jornais, ver filmes. Escolhe o que quer e quando quer. “Estou a par das coisas, não estou à margem, gosto de estar informada.” Só que essa janela para o Mundo não a impressiona. “É uma janela dirigida para alguma coisa que nos querem mostrar. Mais vale ver um documentário.”
Helena Ferreira passa os dias no rebuliço do Porto, mora no agitado Marquês. Tem 75 anos, aos 19 saiu da sua aldeia em Trás-os-Montes para morar na cidade, trabalhou uma vida como auxiliar de ação médica, está reformada há dez. Fala num “apagão”, é esse o termo que usa para contar o dia em que decidiu não ter mais televisão. Foi há 28 anos, quando mudou de casa e levou consigo os dois televisores, um que estava na sala, outro no quarto. Disseram-lhe, em jeito de recado, que as antenas estragavam a estética do prédio, viam-se por fora, ficavam feias à vista, não podia ser. Não tardaram a bater-lhe à porta para assinar contrato com a TV por cabo. Recusou com educação e convicção. “Cortei ali, acabou, não queria mais televisão.” Sente-o como um apagão simbólico e saudável. Até hoje. Mas não sente falta? “Nada, absolutamente nadinha. Tenho Internet, o que quero vou lá ver”, responde.
Helena Ferreira não pára, habituada a viver sozinha, não é de ficar no sofá. “Não gosto de ficar em casa, levanto-me às seis da manhã, às oito estou a sair.” Atividades não lhe faltam, genica também não. É voluntária na igreja ao pé de casa, e na igreja do Carmo, na catequese, nas leituras, nos coros. Toca cavaquinho, tem aulas nos anexos da igreja do Marquês, canta e toca em lares.
Frequenta o Centro Social da Sé Catedral do Porto, zumba, ginástica, tai-chi, ioga do riso, trabalhos manuais. Faz o que lhe dá prazer, nota-se no brilho dos seus olhos azuis, na alegria, no sorriso. “Tenho de sair e de conviver, gosto de me rir, gosto de ajudar se for preciso.” Pouca casa, muita rua, bastante convívio. “Saio sempre, gosto de sair, não gosto muito de ver montras.”
Mais a norte, numa paisagem bem diferente, de campo e não de cidade, no Soajo, em pleno Parque Natural do Gerês, vivem Joana Costa e Yassine Benderra com os dois filhos, um rapaz de 15 anos e uma menina de 11. Juntaram as primeiras letras dos seus nomes para fazer nascer o projeto Joyas da Terra. Praticam permacultura e yoga num modo de vida sustentável em respeito pela natureza, dão formações, recebem quem chega de braços abertos. Vivem numa casa com materiais sustentáveis, sem eletricidade, cultivam o que comem. Não têm televisão há bastante tempo. “É uma decisão de crescimento, de simplificar a nossa vida”, explica Joana.
Yassine cresceu com televisão em casa, dos noticiários à hora de jantar, emigrou para Inglaterra, viajou pela América do Sul. Voltou. Joana tinha televisão em miúda, desligada à hora das refeições, viveu em Itália, também viajou pela América do Sul. Reencontraram-se no Porto, de onde são, já se tinham cruzado na adolescência, e a vontade de recuperar o sentido de comunidade juntou-os, encontraram o seu espaço no meio rural. “Um padrão de vida bastante terra a terra”, diz Joana. Viver da terra e para a terra sem o som da televisão.
“Somos muito low tech”, comenta Joana. As notícias chegam-lhes pela rádio que escutam no carro ou em casa quando querem saber o que se passa. “Somos nós que vamos à procura de informação de uma forma mais direcionada”, refere Yassine.
A mistura do entretenimento e da informação
É sexta-feira, quase hora de almoço, Paula Teixeira está numa pausa de trabalho, é terapeuta, faz massagens. A irmã Carla está a dar uma aula de ioga no espaço amplo, arejado e luminoso, que gerem no Porto. Moram juntas e não ligam a televisão há mais de 12 anos. “Devia ser o normal, não a exceção.” Paula explica porquê. “São demasiados estímulos, já temos telemóveis, não ter televisão é o razoável”, comenta ela que cresceu com televisão, que adormecia no sofá com o aparelho ligado.
Os passos que deu mostraram-lhe outros caminhos. “É um estilo de vida, sim, que tem a ver com a televisão, com a alimentação, com o exercício físico, com mudança de hábitos. Há uma evolução constante. Não ter televisão é, para mim, uma coisa normal.” Participa em retiros de silêncio e introspeção, sessões de meditação e autoconhecimento, não está ligada à Internet 24 horas por dia, seleciona a informação e os meios no seu telemóvel, sabe o que se passa no país e no Mundo, sabe desligar-se do frenesim à volta. “A limpeza da mente devia ser uma prática de detox para muitas pessoas, como reduzir os estímulos para uma qualidade de vida física e espiritualmente sã”, conclui.
O escritor Rui Couceiro está num prédio na baixa do Porto, interior com o charme e o gosto da arquitetura antiga, azulejos nas paredes, num fim de tarde de calor lânguido, o trânsito habitual nas ruas, turistas em passeio, a dois passos dos Aliados. O autor de “Baiôa sem data para morrer” e “Morro da Pena Ventosa” está concentrado num projeto da Fundação Livraria Lello para a cidade do Porto, depois de ter sido responsável pela comunicação do Grupo Porto Editora e editor na Contraponto da Bertrand. Não tem televisão, não vê televisão. E nem é uma questão. “Não é assunto de conversa.” Prefere que o seu tempo seja a ler e a escrever.
Desde 2016, quando se mudou do Porto para Lisboa, que não liga a televisão. Voltou ao Porto e continua a não ter aparelho. Os amigos nem sequer falam disso quando vão a sua casa. “Ninguém vai a casa de ninguém para ver televisão, não há comentários.” Lá está, não é assunto. E a informação está em tanto lado, no computador, no telemóvel, nas redes sociais, no bolso das calças ou do casaco, a toda a hora. “Não há nenhum assunto de que não esteja a par.” Ouve muita rádio, o seu meio de eleição, no telemóvel, no carro, em casa, no computador. “Sempre gostei dos noticiários da rádio, à hora certa, dizem-nos o essencial em sete minutos.” TSF, Antena 1, Renascença, os programas de Sena Santos e de Fernando Alves. Rui aprecia a rádio feita de palavras. Não é homem de vícios, gosta de documentários, vê jogos de futebol no computador, não vai ao cinema, prefere ler, escrever.
A televisão parece estar a perder lugar no espaço e no tempo das famílias. No entanto, dados dos estudos de mercado da Marktest mostram que o número de horas a ver televisão tem aumentado: cinco horas e 23 minutos, em média, por dia em 2023; cinco horas e 29 minutos em 2024. E há um padrão: mais idosos, mais mulheres, mais no norte do que no sul, audiência com baixa escolaridade.
“Os consumos são cada vez mais individualizados”, observa Filipa Subtil, docente da Escola Superior de Comunicação Social, Politécnico de Lisboa, investigadora do LIACOM – Laboratório de Investigação Aplicada em Comunicação e Média, acrescentando que as novas gerações não consomem meios tradicionais, que os idosos são excluídos do mundo digital, que a televisão acaba por ser o que têm em casa e que é mais barato.
Há formas de análise com várias camadas: quem tem e não tem literacia digital, quem tem e não tem mundo, vida social, intervenção ativa, meios financeiros. Outra questão é discernir e separar o que é informação, o que é propaganda, o que são factos, o que são comentários. “Há uma homogeneização, seja do entretenimento, seja da informação jornalística”, sustenta Filipa Subtil.
Ana Jorge, professora da Universidade Lusófona, investigadora coordenadora no CICANT - Centro de Investigação em Comunicação Aplicada, Cultura e Novas Tecnologias, tem estudado estas questões, lembra que é comum estudantes deslocados ou jovens casais não terem televisão, porque não é prioridade, por questões financeiras, e faz outras leituras. A que meios se quer estar ligado, quando, em que circunstâncias? As respostas ajudam a analisar a desconexão aos meios de comunicação como um todo, uma das suas matérias de estudo. A televisão está neste pacote e o capital cultural tem importância, o meio social é para aqui chamado. “A televisão é um meio, permite coisas diferentes e, sobretudo, entretém. Há pessoas para quem é uma perda de tempo, ou mais do que isso, que contamina. Há uma deterioração da informação televisiva, há uma competência entre meios, os recursos são escassos, o que se repercute na qualidade”, repara. Há razões ligadas ao capital cultural para não ter televisão. “Resistência por questões ideológicas, pelo capital social, por razões práticas, pessoas com dois empregos não veem televisão no modelo clássico”, exemplifica. Há fatores e ideias feitas também, como a televisão mata a solidão, sobretudo na população mais velha.
Raquel Costa fala disso. “Há uma camada muito atingida pela televisão que são os idosos, espetam as pessoas em frente ao televisor nos lares.” Recentemente, comenta, colocaram um ecrã enorme na sala de convívio dos alunos na sua escola. Ficou surpreendida e preocupada com a possível suspensão de atividades que ali aconteciam, como jogos de tabuleiro. “É substituir um ecrã por outro.”
Quando se cruza com o aparelho em casa de alguém ou nos lares de idosos por onde passa, Helena Ferreira não pára para deitar o olho. “Não tenho paciência para ver um programa. Coisas de guerra, coisas que ferem, prefiro não ver.” Há 28 anos sem televisão e sem ponta de arrependimento. “Estou sempre ocupada, ocupo o tempo como gosto, da forma como gosto, acho que é mais saudável.” E os seus dois televisores tiveram destinos distintos, um foi para o lixo por ser tão velho, outro levou-o para a casa da aldeia que mantém desligado quando lá vai.
Vê o que lhe interessa no pequeno ecrã do telemóvel, notícias do JN, notícias da bola, o que está a acontecer, está informada, tem tema de conversa quando o assunto é atualidade. Está a par do que ouve falar, procura o que lhe suscita mais curiosidade. Tem dois rádios antigos, sintoniza-os na Rádio Maria, estação católica, e na Antena 1, gosta de acordar com os bons dias de José Candeias, no ar entre as cinco e a sete da manhã. Entretanto, suspendeu as caminhadas ao pé do mar, o calor aperta, interfere na circulação sanguínea, incha-lhe as pernas.
Digerir comida, digerir notícias
Sara Pereira é especialista em Educação para os Média, presidente do Conselho do Plano Nacional de Literacia Mediática, professora do Instituto de Ciências Sociais e investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, estuda e analisa práticas mediáticas e constata que a televisão tem vindo a perder o lugar central que outrora ocupava na vida familiar. “A forma de ver televisão está a mudar de forma muito significativa, não só nos conteúdos de informação, mas também nos conteúdos de entretenimento e de ficção”, afirma.
O aparecimento do digital, de outros dispositivos e plataformas, deixa marcas. O aparelho perde espaço e importância, mas curiosamente quando as atenções recaem nos mais novos e jovens, a televisão ainda está lá. Num estudo nacional com crianças e jovens dos 11 aos 18 anos, ela aparece com uma média de duas horas de consumo por dia, mesmo com a atenção nas redes sociais. “Continua lá presente, na família, ligada, mas não estão a ver com aquela intencionalidade com que se via - não seguem o modelo linear de como se via televisão -, é um consumo de ambiente, consomem o que aparece”, revela Sara Pereira. Nos estudos com estudantes universitários, há um dado que salta à vista: a televisão é considerada um meio de confiança em termos de informação. “O que é muito interessante no tempo das redes sociais.”
O número de televisores por casa portuguesa é informação que deixou de fazer parte das perguntas do Instituto Nacional de Estatística (INE). Os últimos dados estão no Inquérito às Despesas das Famílias 2015/2016 e a televisão está no topo do topo dos equipamentos de comunicação, presente na quase totalidade dos alojamentos com 98,9%, seguido do telemóvel com 93,4%. A ligação à Internet aparece em quinto lugar com 66,8% e o computador em sexto, em 66,3% dos lares. Atualmente, através do Inquérito à Utilização de Tecnologias da Informação e da Comunicação nas Famílias, o INE tem apenas os indicadores relativos aos televisores ligados à TDT – Televisão Digital Terrestre, que não representam o total de aparelhos. Ainda assim, no ano passado, os dados recolhidos mostram que 88,7% das famílias tinham acesso a TV por subscrição e 23,7% à TDT. O acesso à televisão por subscrição é mais frequente entre as famílias com crianças (95,2%) e nas com maiores recursos (93,9%), ao contrário da TDT, que predomina nas famílias sem crianças (25,4%) e com menores recursos (31,3%).
O mercado também é para aqui chamado. A audiência é uma coisa, o público é outra, nota a professora Sara Pereira. “A televisão também se foi adaptando ao mercado, atendendo mais ao que são as audiências do que propriamente aos públicos, aos seus gostos, interesses e necessidades.” Cola-se à sua sobrevivência. Do outro lado, os espectadores reagem e selecionam. “Há uma certa rejeição do modelo passivo para um modelo ativo, optam por não ficarem dentro da própria bolha, vão à procura.”
Rui Couceiro recusa ser um consumidor passivo. “A leitura é um consumo ativo, não podemos ler com um olho aberto e outro fechado. Não gosto de ler para me distrair, a leitura não é entretenimento, leio para chegar mais fundo, e a televisão, raras vezes, permite isso”, sublinha o escritor. Outras distrações significam menos páginas que lê. Sabe como os programas de televisão são e como funcionam. “Não tenho nada contra a televisão. Tenho a noção de quão curta é a vida e não gosto de desperdiçar tempo.” E o tempo nem sempre estica para ler os livros que acumula na mesinha de cabeceira, por todo o lado.
Paula Teixeira também não tem nada contra a televisão, percebe o lugar que ocupa. Para si, há outras coisas, outros fatores: “Não é só a comida que se digere quando se vê televisão à hora de almoço, também se digere o que se vê, todas aquelas notícias”. “O mundo é cruel, mas há muita coisa boa a acontecer, muita coisa para fazer e descobrir”, acrescenta. Em casa da mãe, respeita o espaço, vai tentando que não veja tantas desgraças na televisão, baixa o som, leva-lhe livros para se distrair. “A televisão acaba por ser uma adição”, comenta. No tempo livre, Paula vai ao cinema, ver concertos, pratica desporto, lê livros técnicos e não só. “Tenho muito para estudar.”
Yassine fala da ilusão de comandar o que se se quer ver e ler. “Muita informação é-nos dada pelo algoritmo que sabe aquilo que procuramos.” Ainda se lembra, tal como Joana, dos canais de televisão cada vez mais parecidos nos conteúdos, mais iguais, pouco diferenciadores. Sabem o que querem, procuram o que querem, informação nacional e internacional, ouvem podcasts. Os cafés de aldeia também servem para saber o que se passa numa leitura dos jornais locais. De vez em quando, os filhos falam de televisão, nada de insistente, porque logo lhes mostram o que podem fazer depois do jantar, jogar cartas, jogos de tabuleiro, lerem livros em conjunto, conversarem sobre o que está naquelas páginas.
Nem mesmo quando foi mãe, há 36 anos, Raquel Costa sentiu a tentação de comprar um televisor, a filha via alguns minutos em casa da avó, num ou outro café em passagem, não entrava nas conversas sobre as telenovelas e suas personagens que as colegas falavam na escola. “As suas vivências eram outras.” Hoje a filha de Raquel também não tem televisor.
Filipa Subtil costuma contar uma história aos seus alunos como metáfora sobre a possibilidade de sobreviver sem redes sociais. A mensagem lê-se nas entrelinhas. Numa antiga casa, tinha de arrumar o móvel da televisão para colocar a roupa a secar. Um dia, nessa rotina, o aparelho caiu, o ecrã côncavo partiu-se em mil bocados e um pó tóxico espalhou-se pelo chão. Não substituiu o aparelho e viveu quase um ano sem ele. “Foi uma experiência extraordinária. Li mais, ouvi mais música, falei mais com os meus amigos”, recorda. Era no tempo do primeiro “Big Brother”, “da ascensão do homem comum à televisão”, já dava aulas, os alunos comentavam esse programa. “Não fazia ideia dos personagens, apareciam nas capas das revistas e eu não conhecia as pessoas. Diziam-me que estava fora do mundo, como se o mundo fosse o mundo da televisão.”